‘Um pedacinho dele ainda vive e está ajudando outras pessoas a viver’
Os órgãos de mais um três-maiense continuam dando vida a outras pessoas que aguardavam na fila do transplante. Em janeiro foi a jovem Francine Borges, de 30 anos, que teve seus órgãos doados - rins e fígado - que faleceu em decorrência de um aneurisma cerebral. No início de março, Elemar Motta Salazar, 38 anos, faleceu em decorrência de complicações causadas por uma hemorragia cerebral seguida de politrauma, e teve captados o coração, fígado, rins e córneas. Graças ao gesto de amor e solidariedade, às famílias Borges e Salazar transformaram a perda e a dor em esperança para outras pessoas. A captação de Francine foi feita no Hospital Vida e Saúde de Santa Rosa. Já de Elemar, foi no Hospital de Clínicas Ijuí (HCI), no dia 16 de março, sendo a primeira captação de órgãos de 2025. A captação de um coração, foi a segunda realizada pela instituição de saúde.

Elemar retornou a Três de Maio antes do previsto
Pai de dois filhos, Elemar Motta Salazar trabalhava como safrista em Três de Maio e região, porém, de tempos em tempos, viajava ao Mato Grosso para trabalhar na colheita e no plantio de lavouras. Ele morava em Consolata com a companheira Rudineia de Azevedo e com os filhos Deivid Rafael de Azevedo Salazar, 13 anos, e João Otavio de Azevedo Salazar, 3.
“Fazia poucos dias que ele havia retornado do Mato Grosso. Inclusive, não era para ele estar em Três de Maio, já que o combinado era que seguiria mais um período em outra cidade. O homem de Mato Grosso que contratou meu irmão, nos contou que ele pediu para voltar porque precisava assinar alguns documentos do inventário, mas todo o processo já estava concluído. Ele contou ainda que Elemar estava ansioso para retornar”, contou Geciane da Rosa, ao falar à reportagem do Semanal.
Os familiares não sabem o porquê Elemar tinha tanta pressa em retornar naquele momento.
“Minha cunhada já havia falado que fazia dias que ele estava com uma inquietação anormal.
A irmã lembrou também que há cerca de seis meses antes de sua morte, Elemar ajudou o padrinho dele, o Luizão, a arrumar o túmulo que será utilizado quando os pais vierem a falecer.
"Quando ele viu a cova, disse: 'Esse buraco é meu. Aqui eu quero para mim’. Acredito que ele estava com um pressentimento de que algo iria acontecer. E ele foi enterrado naquela cova, no mês passado", revela a irmã emocionada.
Doador morreu em consequência de um acidente de trânsito
Elemar foi vítima de um acidente de trânsito. Conforme a irmã, ele foi encontrado dentro de seu carro capotado, próximo à entrada do distrito de Consolata, pela estrada que passa por Caravagio, por volta das 1h40 do dia 8 de março, por vizinhos que chegavam à vila.
“Na manhã de sábado, por volta das 7 horas, recebi uma mensagem de bom dia. Na hora eu não respondi. Mais tarde veio outra mensagem perguntando se eu tinha algum parentesco com Elemar Mota Salazar. Foi quando conferi o contato e vi que era da Emergência do HSVP. Falei que era o meu irmão. Foi quando eles me deram a notícia de que ele havia sofrido um acidente e que estava internado”, conta Geciane, lembrando que na noite noite anterior, havia sonhado com o irmão e a mãe, que já é falecida.
Inicialmente, não acreditando na mensagem, Geciane foi até a casa da cunhada para saber notícias do irmão, quando foi informada que Elemar havia saído na sexta-feira e ainda não havia retornado para casa.
Geciane conta que quando chegou no HSVP e viu o irmão, veio um sentimento que tomou conta do coração.
"Acho que foi o Elemar e Deus que me disseran, que se caso ele morresse, deveríamos doar os órgãos. Naquele momento ainda não sabia da gravidade da situação”, relata.
A equipe médica explicou a família que o caso era muito grave e que a chance de ele ir a óbito era grande e, caso ele sobrevivesse, teria muitas sequelas.
Segundo Giciane, o irmão estava sem o cinto de segurança no momento do acidente. As lesões foram somente no cérebro. No restante do corpo, foram apenas pequenos esfolados”, explicou.
"Fosse com um irmão, acredito que ele teria o mesmo gesto"
Elemar ficou internado no HSVP até domingo, quando foi transferido ao Hospital de Clínicas de Ijuí, devido à complexidade do estado de saúde. Os dias passaram e o estado se agravou. No dia 13, quinta-feira, os médicos comunicaram a família da morte encefálica.
“Quando o doutor nos comunicou sobre a morte encefálica, perguntei se existia a possibilidade da doação dos órgãos. Foi quando me explicaram que era preciso aguardar o protocolo e caso autorizássemos a doação, seria necessário esperar um período, que poderia ser de um a dois dias para realizar a captação, por conta do protocolo que exige a comprovação da morte cerebral”, acrescenta.
Conforme Geiciane, os demais irmãos não estavam querendo fazer a doação pela demora na captação. A autorização foi assinada por ela e pela esposa de Elemar.
Os órgãos foram captados no dia 16. O coração era o procedimento mais complexo. Conforme o HCI, a captação do coração foi possível por meio do trabalho das equipes do hospital, da Comissão Intra-Hospitalar de Doação de Órgãos para Transplantes (CIHDOTT).
“A captação de coração é um processo mais desafiador devido ao curto tempo de isquemia (o intervalo entre a retirada do órgão do doador e seu implante no receptor, que idealmente não deve ultrapassar 4 horas). No entanto, graças ao esforço conjunto e ao suporte das diversas unidades do hospital, conseguimos realizar o procedimento com sucesso”, explicou Deise Piccoli Steinke, enfermeira coordenadora da UTI Adulto e presidente da CIHDOT. Além do coração, os dois rins, as duas córneas e o fígado foram doados.
De acordo com a irmã, Elemar nunca havia manifestado o desejo de doar os órgãos, mas era doador de sangue e sempre ajudava os outros.
“Sempre que alguém precisava de sangue, não importava o dia, ele dava um jeito para fazer a coleta. Fosse com algum irmão, eu imagino que ele teria o mesmo gesto. Acho que a pessoa que não quer doar seus órgãos, não vai se interessar em doar sangue para salvar outras pessoas", avalia a irmã, ressaltando que o gesto, além de ajudar outras pessoas, traz conforto para os familiares.
"É só um corpo sendo enterrado, mas para quem recebe um órgão é uma nova esperança de poder viver"
A iniciativa da doação partiu da irmã e teve o apoio da cunhada depois de muita conversa.
“Eu falei para minha cunhada, nem que seja apenas um órgão, vamos doar. E ainda disse a ela: ‘se fosse um filho nosso que estivesse esperando por um órgão e uma pessoa tivesse morte encefálica, o que você iria pensar?’, foi aí que ela concordou com a doação”, recorda.
Geciane acredita que, se houvesse mais apoio para a família, haveriam mais doações.
“Nesses momentos deveria ter um profissional capacitado para conversar mais com a família. Depois de passar por essa experiência, acredito que a maioria dos familiares desiste por conta dessa demora de todo processo. Se houvesse um apoio, haveriam mais doações”, frisou.
Geciane, diz que não tem nenhuma declaração de que é doadora de órgãos, mas expressa o desejo aos familiares.
"Penso que não podemos apenas enterrar uma pessoa que morreu com os órgãos saudáveis, sendo que têm centenas que passam anos esperando por um órgão. Para nós é só o corpo que está sendo enterrado, mas para quem recebe um órgão é uma nova esperança de poder viver”, disse a irmã.
A irmã finaliza, acreditando que a doação dos órgãos de Elemar era o propósito de Deus para ele. “Quem olha aquele barranco não imagina que um carro poderia capotar. Acredito que ele cumpriu sua missão aqui e agora irá salvar outras vidas. Para ser uma pessoa boa, você não tem que viver na igreja, você só precisa fazer o bem, não ser egoísta. E fazer o bem é isso. O corpo irá apodrecer, com a doação, outras pessoas terão uma nova chance de viver”, finaliza.
“Precisamos falar mais sobre doação de orgãos"
Ao falar ao Semanal, a companheira Rudineia, emocionada, destacou a importância de falar sobre a doação de órgãos. “Eu gostaria de incentivar as pessoas sobre a doação, pois é uma ação que pode salvar muitas vidas, dando oportunidade de outras pessoas viverem. As pessoas que estão esperando um transplante, a única esperança é de que um dia apareça um doador. Para os familiares, é uma decisão muito difícil, pois você já está naquele momento de luto, mas saber que ele salvou tantas outras vidas, e que agora poderão viver momentos bons com suas famílias, é bastante significativo. É muito emocionante pensar que um pedacinho dele ainda vive, ajudando outra pessoa a viver. O coração dele segue batendo. Isso me emociona”, disse.
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