A poeira nas chuteiras de Nena

Luís Pereira, o Nena, chegou em Três de Maio aos 19 anos, vindo de Santa Catarina. Aqui fez história no Botafogo - time pelo qual ele jogou 1975 a 1990 - e construiu sua vida pessoal e profissional

A poeira nas chuteiras de Nena
A doença de Parkinson impede Nena de mostrar suas habilidades com a bola nos gramados, mas não o impossibilita de continuar incentivando o esporte pelo qual se apaixonou ainda criança. Nena é um dos idealizadores da escolinha de base do Botafogo, que envolve cerca de 180 crianças e adolescentes até 16 anos

Aquele que muitos vieram a conhecer apenas pelo apelido de Nena, quando nasceu, em 10 de julho de 1955, em Blumenau (SC), recebeu de seus pais, João Marcelino Pereira e Catarina Pereira, o nome de Luís Pereira, em homenagem a um dos maiores zagueiros da história do futebol brasileiro, o baiano Luís Edmundo Pereira, então jogador do Palmeiras e posteriormente considerado pela Federação Internacional de História e Estatística do Futebol o  37° maior jogador Sul-Americano de futebol no século XX. 

Quando jovem, seu pai se alistou como um dos Voluntários da Pátria durante a Segunda Guerra Mundial, mas não chegou a ser enviado para lutar nas trincheiras da Europa. Já sua mãe era enfermeira. Teve dois irmãos mais velhos: Carlos (1953) e Francisco (1954).   

Desde criança sempre foi um apaixonado pelo futebol e só não brincava com bola quando estava com sua melhor amiga, Margareth Siebert, que, além de ser sua vizinha, era também atriz, tendo participando inclusive de alguns filmes para o cinema. Margareth era muito conhecida pelo apelido de família que trazia consigo desde criança, Nena, e como os dois viviam o tempo todo juntos, por uma certa simbiose, Luís acabou sendo chamado também de Nena, alcunha pela qual viria a ser conhecido por toda a sua vida.

 

O começo como jogador

Em 1967, com 12 anos de idade, insistiu com seu pai para ir fazer um teste no Internacional em Porto Alegre, mas, como era muito longe, seu pai o levou para fazer teste no Amazonas Esporte Clube de Blumenau. Lá, após mostrar desenvoltura com a bola nos pés, Nena acabou entrando para o time no qual permaneceu jogando por muitos anos, e assim como seu ídolo do Palmeiras, assumiu a posição de zagueiro, posição que lhe rendeu um bom reconhecimento como jogador.

Durante este período, fez amizade com outro jogador de talento, chamado Pastoril, que por se destacar muito entre os demais era bastante convidado para testes em outros clubes, e num certo dia, reconhecendo o talento de Nena, lhe disse: “Qualquer time que eu for jogar, eu vou te chamar”. Mas um dia, Pastoril sumiu e nunca mais Nena teve notícias dele.

Alguns comentavam que estava jogando em algum clube de São Paulo, outros, que estava no Rio Grande do Sul, mas o fato é que ninguém sabia ao certo por onde andava o homem. Até que certa feita, do nada, Pastoril apareceu por Blumenau novamente e foi conversar com Nena. “E aí, Nena? Vamos para o Rio Grande do Sul jogar?” E Nena, já no auge de seus 19 anos de idade e com todo o furor aventureiro dessa idade, na mesma hora respondeu: “Vamos”.

 

A vinda para Três de Maio

Naquele mesmo ano de 1975, o Amazonas Esporte Clube de Blumenau estava sendo desativado, depois de passar por inúmeras adversidades e sua propriedade ser vendida, um ano antes, para uma empresa que acabaria aterrando seu estádio.

Encerrava-se ali uma história que havia começado em 1919 e que ao longo dos anos havia levado o clube a ser um dos maiores campeões de Blumenau. Naquela altura dos acontecimentos, Nena já havia tido pequenas experiências com outros clubes de Santa Catarina, então, quando surgiu, através de Pastoril, um convite para se aventurar em um lugar mais distante, no Rio Grande do Sul, nada mais o segurava em Blumenau.  

Mas, talvez por conta dos transtornos causados pela iminência de seu fechamento, o clube demorou bastante para liberar sua ficha de jogador, necessária para que Nena pudesse se cadastrar na Federação Gaúcha de Futebol. Mesmo assim, ele e Pastoril pegaram um ônibus e viajaram até Ijuí, onde, na Estação Rodoviária, o taxista Sthöl já os aguardava para levá-los a seu destino final: Três de Maio.

Chegaram por volta de 1h da manhã e foram diretamente à residência do professor Arduíno Raymundo Dalsenter, um dos dirigentes do Botafogo Futebol Clube na época. Dalsenter havia ficado encarregado de receber e auxiliar no que fosse preciso o novo jogador do clube, caso este fosse aprovado no período de testes pelo qual passaria nos dias seguintes, e na falta de espaço em sua casa para hospedá-lo, Arduino montou uma barraca em seu quintal e colocou uma cama confortável para que ele pudesse descansar da viagem. 

Mas logo que clareou o dia, Arduíno já o tirou da cama e, juntamente com outro dirigente do Botafogo, José Tomazzoni, saíram de carro pelas ruas para mostrar a cidade ao novato, e, assim, Nena foi devidamente apresentado a todos os dirigentes do Botafogo, faltando apenas mostrar o que sabia fazer com uma bola nos pés. No dia do teste, após alguns minutos de treino com a bola rolando, o técnico do time, Marcelino Cassol, o chamou de lado e disse: “Você precisa chegar mais junto, aqui o jogo é no contato físico”. 

Mas Nena não estava acostumado com aquele estilo de jogo; havia aprendido a jogar preocupando-se em evitar contatos físicos mais intensos, para evitar lesões durante a partida, e como as cobranças por investidas mais acirradas contra os oponentes continuaram a beira do gramado, Nena não teve outra escolha e, em uma forte dividida contra outro jogador, quase quebrou a perna deste, deixando-o estendido ao chão do gramado. 

Aquilo acabou gerando um enorme desânimo em Nena, que chegou a comentar que talvez não ficasse no clube. Foi uma primeira impressão bastante negativa a qu e teve, mas logo as coisas se arrefeceram e ele pensou consigo: “futebol é assim mesmo”, e resolveu continuar. 

Em poucos dias já havia se adaptado àquele novo estilo, mais duro, e logo seu talento começou a desabrochar novamente.

 

Time do Botafogo aquecendo durante um treino na década de 80

 

O começo de uma nova vida

Nena entrou para o time do Botafogo já como titular, jogando na zaga, e a primeira partida que despontou a sua frente era justamente o maior clássico da região: um Botal. 

Mas as notícias de que Nena ainda não havia sido cadastrado na Federação Gaúcha de Futebol já eram de conhecimento amplo em Três de Maio, e a torcida do Oriental, naqueles dias que antecederam ao Botal, prometeram fazer muito protesto caso o jogador entrasse em campo. 

Então alguns telefonemas foram dados e logo tudo se agilizou. 

Quando os dirigentes do Botafogo foram informados de que a ficha de Nena já se encontrava disponível junto a Federação Gaúcha de Futebol, imediatamente enviaram a Porto Alegre uma pessoa para buscá-la, mas decidiram guardar aquilo em silêncio, e poucas horas antes da partida, a ficha que autorizava Nena a jogar chegou discretamente a Três de Maio. 

Naquela altura dos acontecimentos, os dirigentes do Botafogo já haviam até mandado confeccionar uma faixa com os dizeres: “Nena vai jogar! Pode protestar!”. 

Mas os protestos acabaram sendo também bastante discretos, pois bocas miúdas pelos cantos já avisavam que Nena estava regularizado no futebol gaúcho. Logo na sua estreia, Nena mostraria que era ‘pé quente’, ajudando sua equipe a vencer aquele clássico por 1x0, com gol de Machadinho. Nena não marcou naquela partida, mas mostrou muito do que era capaz de fazer dali para a frente e ninguém teve dúvidas de que o time tinha encontrado um grande talento.

Confirmado como titular do time, Nena começou a trabalhar como balconista na Tecidos Bonamigo, mesmo local onde, anos antes, outro ex-jogador do Botafogo havia também trabalhado: o faixa Olívio Casali. 

Foi nestes dias que uma jovem torcedora do time, que costumava estar sempre a beira do campo assistindo as partidas, começou a chamar a sua atenção, chamada Elizabete Rigon, mas conhecida como Beti Rigon.  

Logo Nena e Beti começaram a namorar, até que, certo dia, Nena resolveu aceitar um convite para fazer testes em um time de São Borja, cidade onde deveria permanecer por cerca de um mês, e foi neste período que percebeu o quanto a falta de Beti lhe angustiava. 

Então, como uma forma de amenizar as dores do coração, Nena começou a escrever cartas para Beti todos os dias, o que resultou em 31 cartas enviadas no período de 30 dias em que permaneceu em São Borja. 

Quando finalmente retornou a Três de Maio, suas cartas ainda estavam chegando pelo correio. 

 Aquilo acabou não deixando dúvidas de que ele havia encontrando em Beti a pessoa certa para enfrentar as adversidades da vida ao seu lado dali para a frente, e os dois acabaram se casando em 1983.  O casal teve três filhos: Fabricio (1986), Luiz Felipe (1988), e Betina (1989). Mas, neste período, o maior golpe que sofreram da vida foi a perda prematura de seu segundo filho, pouco tempo depois de nascer, devido a uma má formação em uma das válvulas do coração. 

 

Botafogo mais duas vezes campeão do Estado

Em 1980, tendo Camilo Kerwald como técnico do time, conseguiram conquistar o Tricampeonato Estadual de Futebol Amador no município de Marau, quando, no quadrangular final, o Botafogo de Três de Maio enfrentou as equipes do Grêmio de Marau, Strassburger de Crissiumal e Ferreira de Cachoeira do Sul. 

Além de Nena, aquela equipe contava também com Tarcísio, Antônio, Derli, Lautério, Tabajara, Alemão, Danilo, Perinazzo, Hélio e Zamberlam, além dos reservas Celito, Vicente, Müller, Vilson Foletto, Paulo, Décio e Guto Cassol. O presidente interino do clube, após Neri Jahn se licenciar do cargo, era Jorge Luiz Wächter. 

Tornaram a repetir aquele feito em 1985, no município de Ivoti, quando no quadrangular final enfrentaram as equipes de Ivoti (que era o município anfitrião), o Avenida de Soledade e o Arroio Grande, do município de Arroio Grande. O técnico do time, naquele momento, era Ademir Dahlem. 

Como naquele tempo era mais complicada a logística para os times se deslocarem pelo Estado, e mesmo por conta de questões financeiras envolvendo hospedagens e alimentação, as partidas do quadrangular final aconteciam durante três dias seguidos: sexta, sábado e domingo, não havendo intervalo de alguns dias para se recuperarem de cansaços ou lesões. 

Aquela final, em Ivoti, acabou dando ao Botafogo de Três de Maio o seu quarto título estadual de futebol amador, levando-o a se tornar um dos times mais respeitados do Interior do Estado. 

Além de Nena, aquela equipe de 1985 contava também com Ernani, Nelson, Bolivar, Machado, Alemão, Ademir, Leivinha, Tarcísio, Dalmas, Perinazzo, Busanelo, Jesus, Zamberlam, Fipo, Neca, Tiecher, Chiquinho e Borbolha. O presidente do clube naquele momento era José Freddo Neto.

 

O maior de todos os desafios

Certo dia, em 2008, sua filha Betina, o observando andar, percebeu que algo não estava certo, e comentou: “Pai, você não está caminhando direito”. Nena então procurou um médico para tentar descobrir o que estava acontecendo, mas o diagnóstico naquele momento foi inconclusivo. 

A progressão da doença ia acontecendo de forma lenta, e para tirar a certeza do que realmente estava acontecendo consigo, em 2010 Nena foi a Passo Fundo consultar com o Dr. Nélio Azambuja, e lá fez todos os exames neurológicos necessários, quando finalmente foi confirmado que aquelas disfunções motoras que vinha percebendo eram o início dos sintomas da doença de Parkinson. A notícia só veio a confirmar o que ele já sabia há muito tempo. 

Mas a doença não impediu Nena de continuar envolvido com o esporte pelo qual se apaixonou por toda a sua vida, e agora, juntamente com outros parceiros, ele corre por fora dos campos, ajudando outros jovens a alcançarem, através do esporte, uma inspiração para continuar se superando e lutando sempre.

Nena jogou no Botafogo até 1990, mas como um bom jogador, seu coração jamais deixou de “chegar mais junto” ao preto e branco, assim como seu antigo técnico, Marcelino Cassol, um dia lhe orientou.

 

Nena e Tarcisio Cassol em um momento de descontração

 

Nena continua incentivando projeto de futebol voltado para crianças e adolescentes

Nena iniciou os trabalhos de sua escolinha de futebol voltada para crianças e adolescentes por volta do ano de 2000. Na época, os treinos e jogos eram realizados no Estádio Municipal, atual Poliesportivo. Por volta do ano de 2004, uniu forças com o coordenador técnico do Botafogo Futebol Clube de Três de Maio, Carlos Rosário Alves, mais conhecido como Carlão, com quem passou a dar prosseguimento ao projeto no Estádio do Estrelão, onde continuam até hoje. Nesta caminhada, diversos outros parceiros ajudaram a ajudam a fortalecer o projeto, muitos deles, ex-jogadores do time e ex-alunos da própria escolinha, como Márcio Witczak. 

Quando iniciou o projeto no Botafogo, eram cerca de 80 crianças e adolescentes, número que variou ao longo dos anos. Neste período de atividades, a escolinha conseguiu garimpar diversos talentos, como as jovens três-maienses Jennifer Felten, que chegou a ser escalada para jogar nas categorias sub-15 e sub-17 da seleção brasileira feminina de futebol, e Carol Quaresma, que hoje atua no time sub-20 feminino do Grêmio de Porto Alegre, entre outros nomes que estão despontando no cenário da região e Estado. 

Porém, para Nena e Carlão, a projeção de jogadores em nível profissional não é o foco principal da escolinha, e sim, a construção de valores de ética, de respeito, e proporcionar oportunidades iguais para todos os alunos da escolinha, além de diminuir a distância social entre eles e promover inclusão. 

O projeto é mantido através da contribuição de empresas locais e de pessoas que se dispõem a contribuir voluntariamente com a iniciativa. Hoje, a escolinha conta com cerca de 180 crianças.

 

Nena é um grande incentivador de competições esportivas que envolvem crianças, como a 1a Copa Preto e Branco, que reuniu equipes de escolinhas de base de toda região em 2019