ECOS DO TEMPO: Lires Luzia Haas - Transformou trabalho em amor, e amor em herança
A “Muti”, alma do Hotel Karinmã, costurou com fé e coragem cada pedacinho de sua história – e hoje segue vivendo nas lembranças e no olhar da filha, que carrega em si a força e a resiliência da mãe”
Angélica chegou para a entrevista serena, mas seus olhos verdes e expressivos denunciavam a ansiedade e doçura de quem carrega uma história profunda dentro do peito — uma história que precisava ser contada, não apenas com palavras, mas com emoção. Trazia no olhar sentimentos contidos de quem sabe que vai revisitar lembranças profundas — aquelas que doem, mas também aquecem o coração. Falava com leveza, mas cada palavra vinha carregada de amor pela mãe, Lires Luzia Haas, a conhecida “Muti”, hoje com 76 anos.
Logo nos primeiros minutos, percebi que não seria apenas uma conversa. Era um reencontro com o passado, uma viagem pela força e pela fé de uma mulher que dedicou a vida inteira à família e ao trabalho e de uma forma silenciosa transformou as durezas do tempo em legado.
Angélica começou contando que a mãe nasceu em Campo Novo, numa família de catorze irmãos. A infância foi marcada por privações. “Eles passavam muita necessidade”, disse ela. Ia descalça para a escola, estudou apenas até a quarta série, e a mãe dividia um ovo para duas crianças. As meninas dormiam juntas em uma cama, os meninos em outra. O pai trabalhava como agricultor em terras de vizinhos, e assim garantiam o sustento básico da casa.
Aos oito anos, Lires foi entregue às freiras do hospital. A mãe estava debilitada após a perda de um bebê e não tinha condições de pagar as despesas dos procedimentos realizados. A menina passou a realizar pequenas tarefas em troca do pagamento. Ali ficou até os dez anos de idade: “Minha mãe sempre dizia que tinha só uma calcinha, lavava à noite e pendurava na cabeceira da cama pra usar no outro dia”, lembra a filha, uma das memórias mais marcantes.
Foi nesse período que sua irmã ficou doente e precisou de cuidados médicos. Lires permaneceu no hospital para pagar os custos do tratamento. E foi também lá que uma freira, sensibilizada com sua situação, pagou um dentista — ela ainda era uma criança — para extrair todos os dentes que haviam apodrecido.
Quando deixou o hospital, não voltou mais para casa. Começou a trabalhar como doméstica na casa de médicos, cuidando de crianças e fazendo as tarefas do lar. O pagamento, no entanto, era entregue à mãe, que vinha pessoalmente buscá-lo para sustentar os outros filhos. “Ela não teve infância”, disse Angélica, e por um instante o olhar se perdeu. Era uma dor contida, de quem aprendeu a transformar sofrimento em admiração.
O destino, no entanto, tinha novos caminhos. Lires conheceu o marido trabalhando na Churrascaria Motorista, em Três de Maio — ele churrasqueiro, ela cozinheira. Foram anos de muito trabalho, mas também de conquistas. Venderam férias, economizaram centavo por centavo e, com o tempo, alugaram um antigo hotel, isso em 1982. O negócio deu certo e possibilitou a compra de um terreno e ali construíram o Hotel Karinmã, inaugurado em 1985. “O hotel era a vida dela”, contou a filha, orgulhosa. “Ela era a alma daquele lugar. Era o coração do hotel. Aquela pessoa que ninguém está vendo, mas que sem aquele órgão nada funciona.”
E realmente era Lires que fazia tudo — recebia hóspedes, costurava as roupas de cama e os panos de prato, fazia geléia caseira para o café da manhã, cultivava pepinos, beterrabas, rabanete e cenouras e depois fazia as conservas. “Quase nada era comprado”, explicou a filha. “Tudo vinha das mãos dela.”
No fim de semana, a cena era sempre a mesma: baldes de frutas, panos de prato recém-costurados e o cheiro de café caseiro. A velha máquina de costura, que ainda existe, é hoje um símbolo de amor, memória e dedicação.
Mas a vida também lhe trouxe dores profundas. Teve quatro filhos. Edson, o filho mais velho, que atualmente mora em Santa Catarina. Depois vieram mais dois filhos que morreram ainda pequenos — a menina aos três meses e o menino aos seis anos, de hidrocefalia, a quem se dedicou intensamente. Não foram poucas as vezes que ela carregava o filho no colo e o levava para Passo Fundo e Porto Alegre em busca dos melhores atendimentos médicos. “Os médicos disseram que ela não devia mais engravidar. Mas ela pediu a Deus uma nova chance”, conta a filha, recordando que a mãe sempre dizia: “Quero ter uma vida com filhos e não só trabalhar.”
Foi assim que nasceu Angélica, a filha caçula. A menina que cresceu dentro do hotel, entre hóspedes, malas e o cheiro de lençóis limpos. Hoje, adulta, é gerente do Hotel Karinmã, e guarda da mãe não só o nome do lugar, mas carrega o mesmo amor pela hospitalidade e o mesmo senso de responsabilidade. “Eu queria fazer metade do que ela fazia”, disse com um sorriso. “Ela fazia tudo sozinha. Hoje eu tenho uma rede de apoio de colaboradores, ela não tinha ninguém.”
Com o passar dos anos, o casamento acabou. Mesmo após a separação, Lires continuou trabalhando no hotel, a pedido dela. Em dado momento, Angélica percebeu que a administração era falha, já que na constância do casamento a administração era responsabilidade do pai. Foi quando surgiram os primeiros sinais de Alzheimer — esquecimentos, confusões, distrações. “A mãe começou a pedir para eu atender os hóspedes. Dizia: ‘Vai tu, tu falas melhor.’
Quando o diagnóstico veio, a família levou três anos para aceitar. “Na época não gostava dessa responsabilidade de cuidar do hotel”, diz Angélica, mas hoje aprendeu a gostar e faz tudo com muito amor.
Na conversa, Angélica contou que a mãe sempre foi superprotetora e relembrou gestos de amor que marcaram a vida das duas, como quando a mãe a acompanhava até o ponto de ônibus, mesmo ela já adulta. “Acho que ela tinha medo de me perder.”
E com brilho nos olhos contou do maior orgulho de Lires: a formatura da filha em Direito. “Ela pagou minha faculdade com o dinheiro da aposentadoria. Durante meus estudos, ficava ao meu lado com a cuia de chimarrão, às vezes fazia uma pipoca, ficava ali em silêncio, só fazendo companhia”, disse emocionada.
Mas a doença avançou. Lires começou a esquecer panelas no fogo, a se perder dentro do hotel. Angélica tentou levá-la para morar com ela, mas a mãe insistia: “Quando vamos para o hotel? Que horas vamos para o hotel?”
Foi preciso coragem para decidir levá-la ao Lar dos Idosos. Sofreu críticas, julgamentos, mas hoje tem a certeza de que foi a melhor escolha. “Ela se adaptou rápido. No lar, ela acredita que está no hotel. Se alguém pergunta o que fez, ela responde: ‘Arrumei as camas e servi o café’.”
Enquanto falava, Angélica sorria. “Ela está feliz, e isso é o que importa”.
Lires está no Lar há três anos. Às vezes reconhece a filha, às vezes não. Segura sempre uma boneca nos braços — um gesto que Angélica acredita estar ligado à memória dos filhos que perdeu.
Lires tem sete netos (dois meninos e cinco meninas). “O amor não precisa de memória”, disse a filha, ao lembrar do dia em que a mãe pegou no colo seu filho, o bebê de 5 meses - algo mágico aconteceu. “O bebê sorria para a avó e a avó interagiu amorosamente sem reconhecê-lo como neto. Isso é coisa de Deus, a conexão é divina.”
Os netos - um de 5 meses e outro de 4 anos - quando vem visitar a avó, Angélica percebe que a mãe ama as crianças, mesmo não entendendo que são seus netos, porém percebe que o carinho e o amor transcendem a doença e de alguma forma ela percebe o vínculo de afeto. "Antes da doença, minha mãe era muito carinhosa com as netas, filhas de Edson. Ela dava muito carinho e amor para elas."
Para Angélica, o lar é uma extensão da família. Ali, sabe que a mãe está cuidada, acolhida e respeitada. “Ela confia em Deus, sempre confiou. É a mulher mais honesta, trabalhadora e resiliente que eu já conheci. Cai, levanta e continua.”
A entrevista terminou em silêncio. O mesmo silêncio bonito que acompanha quem fala de amor verdadeiro, cheio de reverência, percebi que os olhos de Angélica, guardavam a mesma luz que, um dia, iluminou o saguão do Hotel Karinmã — onde ainda vive, em cada detalhe: nas paredes, nos objetos, nas lembranças e para sempre a presença amorosa de Lires Luzia Haas, a Muti, a verdadeira alma daquele lugar.









Comentários (0)