Novo começo: Conheça Marie Jude Cajuste, haitiana que está reescrevendo sua história no Brasil
Já imaginou ter uma carreira profissional consolidada, casa própria e, de uma hora para outra, precisar começar do zero em outro país? Essa é a trajetória da Marie Jude Cajuste, 52 anos, natural de Porto Príncipe, capital do Haiti, que há 8 anos veio para Horizontina. No último dia 29, Marie defendeu seu TCC do curso superior de Enfermagem da Setrem.
Marie chegou ao Brasil em 2015. A vinda ocorreu por iniciativa do então companheiro dela, pai do seu filho mais novo. “Eu não queria vir para o Brasil. Eu tinha minha a profissão, meu trabalho, minha casa. Mas, após o terremoto que devastou nosso país, o pai do meu filho Jean, no ano de 2014, não quis mais ficar no Haiti. Foi então que ele veio clandestinamente ao Brasil. Ele entrou sem visto, em Manaus-AM, onde ficou em uma casa de padres que acolhem os haitianos. Depois de algum tempo, ele achou que seria bom vir para Horizontina, onde trabalhou com reciclagem”, relata.
No dia 11 de março de 2015, Marie e o filho Jean Michel Cliffold Bichotte, atualmente com 16 anos, chegaram ao Brasil, tendo como destino a cidade de Horizontina. “Quando cheguei aqui, logo comecei a trabalhar em uma casa de repouso, como cuidadora de idosos. Foram sete anos e sete meses trabalhando nessa casa”, explica.
Em Porto Príncipe, ela atuava como enfermeira-chefe e tinha uma clínica onde realizava procedimentos clínicos, que, pela legislação do Haiti, se assemelha ao que um médico faz no Brasil: com prescrição de receitas médicas, pequenos procedimentos e consultas. “Eu estudei enfermagem, fiz uma especialização em ginecologia e era parteira”, diz.
Com o passar dos anos, mais familiares chegaram ao Brasil. Em 2016, o filho mais velho de Marie, Jhon Ramsés Lavagesse, de 30 anos, também veio para Horizontina, e pouco tempo depois, a esposa dele, haitiana, também veio se juntar à família. Eles moram em Horizontina e Jhon trabalha na empresa John Deere há quatro anos. Em 2018 chegaram a mãe Mona Saint Jean e a irmã Renée Cajuste. O último a se juntar à família foi Dani Christian, filho de Reneé, que desembarcou em Horizontina em 2020.
A mãe de Marie faleceu em agosto de 2019, em decorrência de uma pneumonia, aos 77 anos. No mesmo ano o relacionamento com o pai de Jean chegou ao fim, momento em que decidiu ir em busca do sonho acadêmico no Brasil. “Era algo que eu queria fazer muito desde que cheguei ao Brasil, mas ele (ex-companheiro) não deixava. Ele sempre dizia que eu não teria tempo para estudar”, relembra ela. A vontade de estudar era tanta que seu companheiro foi embora em uma quinta-feira e na sexta-feira Marie veio até a Sociedade Educacional Três de Maio (Setrem), em Três de Maio, para buscar informações sobre o curso de Enfermagem.
O caminho até entrar no curso de Enfermagem
No Brasil, Marie não conseguiu utilizar o diploma em Enfermagem para atuar em sua profissão, pois não havia como validar o curso aqui. Para ingressar na graduação em Enfermagem da Setrem ela teve que começar com a educação básica em território brasileiro. Precisou comprovar a alfabetização, cursando EJA, e fez a avaliação do Encceja (Exame Nacional para Certificação de Competência de Jovens e Adultos) para a conclusão do Ensino Médio. Com as certificações, conseguiu ingressar no ensino superior, através de uma bolsa de estudos pela filantropia da Setrem.
O professor e coordenador do curso de Enfermagem da Setrem, Gilberto Souto Caramão, ressalta que a jornada tem sido cheia de emoções profundas e inspiradoras. “É uma oportunidade que transcende fronteiras e tem um impacto significativo, tanto para a acadêmica como para a nossa instituição. Para ela tem sido uma jornada repleta de esperança e determinação, e significa a chance de realizar um sonho, de superar desafios inimagináveis e de se tornar uma agente de mudanças”, ressalta.
Para Gilberto, a presença da acadêmica mostra a possibilidade de fortalecer a equipe de profissionais de saúde da instituição, tornando-a mais inclusiva e capacitada para atender às necessidades de uma sociedade igualmente diversa. “O conhecimento, a empatia e o cuidado são idiomas universais, capazes de tocar corações e transformar vidas, independentemente de onde uma pessoa chama de lar”, acrescenta.
No dia 29 de novembro Marie apresentou o seu Trabalho de Conclusão de Curso sobre os cuidados de enfermagem com idosos institucionalizados. Em sua apresentação, Marie finalizou dizendo que “enfermagem é cuidar de alguém que você nunca viu na vida e, mesmo assim, dar o seu melhor a ela, fazer tudo pela vida dela”.
Diferenças da enfermagem no Brasil e no Haiti
Dentre as diferenças entre os dois países, Marie se surpreendeu com a limitação da atuação dos profissionais de enfermagem no Brasil.
Ela conta que, no Haiti, as atividades dos enfermeiros envolvem a parte clínica, a realização de consultas, as atribuições de farmacêutico, além de fazer episiotomia (corte realizado na vagina da mulher no final do parto). “No Haiti, o paciente somente com um quadro mais complexo, como cirurgias, é repassado para o médico”, explica.
Diferenças culturais, de alimentação e clima
Devido à diferença, a língua trouxe certa dificuldade para a haitiana, mas ela diz que não foi tão complicado para aprender. “Eu consegui aprender o português. Quando teve o terremoto no Haiti, o Brasil ajudou nosso país com o exército, e eu, como enfermeira-chefe, conversei com os soldados, então eu já entendia o português desde aquela época”, explica.
Além do português, Marie fala outros três idiomas. “Nós temos a nossa língua nativa, que é o ‘crioulo’. Algumas palavras lembram o inglês, porém, são pronunciadas de uma forma mais forte. Falamos ainda o francês, que é a língua oficial desde a independência do país, além do inglês, que aprendemos na escola”, ressalta Marie.
Mesmo superando a diferença de linguagem, a adaptação ao Brasil foi dolorida para ela. “Quando você deixa o seu país, deixa para trás a sua casa, seu carro. Eu trabalhava de enfermeira, que eu amava, toda a vida. Aí você tem que começar do zero. As pessoas não valorizam e isso é muito doído”, salienta.
No início a família também teve dificuldades com a alimentação. “Eu achei a comida daqui muito seca. Nós aprendemos que as crianças, bebês e idosos devem comer caldos, molhos e sopas, e aqui a comida é muito seca”, observa.
Outro desafio foi o clima. Marie acredita que nunca irá se acostumar com o clima do sul brasileiro, por ser muito diferente da sua terra natal. “No nosso país é quente todos os dias, mas não faz calor tão intenso como aqui, e lá nunca faz frio”, ressalta.
As festas tradicionais também são distintas na cultura haitiana. “O carnaval no Haiti é muito diferente do que tem aqui. Lá as roupas são bastante coloridas e cobrem todo o corpo. Tem um carro de som todo enfeitado com artesanatos e com mulheres bem bonitas. O carro de som sai pelas ruas e as pessoas ficam esperando este carro para seguir”, conta.
Outra diferença é que no Haiti os filhos recebem somente o sobrenome do pai.
Atualmente, toda sua família está melhor adaptada ao país e a cidade que escolheram para viver.
Além de Marie, que cursou Enfermagem, a irmã Renée está cursando faculdade em Santa Rosa. Ainda, Jean, seu filho mais novo, estuda no EJA (Educação de Jovens e Adultos), em Santa Rosa, onde conseguiu se adaptar com mais facilidade.
Enfermeiras Adriane Kleinpaul e Silvana Ceolin, avaliadoras da banca; acadêmica e autora do TCC, Marie Cajuste; enfermeiro e avaliador da banca, Gilberto Caramão; e a enfermeira e orientadora do TCC, Carlice Scherer, no dia da defesa da banca. Devido à necessidade de adaptação ao contexto acadêmico, Marie também recebeu atendimento da Coordenadora Pedagógica da Setrem, Elisabete Andrade, para a produção do Trabalho de Conclusão de Curso
Futuro na enfermagem
A trajetória de Marie como acadêmica no curso de Enfermagem da Setrem está chegando na reta final, mas seu caminho na enfermagem segue em construção.
No dia 29 de novembro ela defendeu o seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), que abordou os ‘Cuidados de enfermagem com idosos institucionalizados’, onde fez uma revisão integrativa a partir de artigos científicos. “Depois que eu apresentei o TCC me senti com um pouquinho de liberdade, mais leve, parece que tirei um peso de cima de mim. Eu senti felicidade, porque pensei que não iria dar certo, mas com o apoio dos professores consegui concluir essa etapa e só tenho a agradecer a todos eles que me auxiliaram e orientaram”, declara Marie.
Ela relembra que houve alguns dias difíceis durante a jornada. “Às vezes ficava chorando, querendo desistir, achando que não conseguiria concluir o trabalho, mas por fim deu tudo certo e estou bem feliz”, acrescenta.
Marie já deu palestras em escolas particulares de Horizontina. “Eles me enviam um assunto, eu monto os slides e faço minha apresentação. Eu tenho duas apresentações. Uma é da minha vida aqui, minha caminhada até chegar no curso de Enfermagem e tudo o que eu passei, e outra é sobre o Haiti, onde falo sobre suas belezas, tradições, comidas, roupas e cultura”.
A haitiana diz ter muitos planos para o futuro. Deseja atuar como massoterapeuta e ter uma clínica, como tinha no Haiti. “Eu tinha uma clínica em Porto Príncipe, com uma farmácia, mas acabei perdendo tudo, pois colocaram fogo em minha casa. Aqui eu já fiz massagem em várias pessoas e elas gostaram.”
Outro desejo é atuar na atenção básica de saúde à população, como enfermeira em Unidade Básica de Saúde. “Este é o meu sonho: atuar novamente na área que tanto amo, e ver a minha família crescer dia após dia. Estou realizando o meu sonho, de novo, e darei um sorriso chorando de felicidade”, finaliza.
Marie com os filhos Jean e Jhon, que se juntaram à família e estão construindo a vida em Horizontina
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