Como a exposição digital ameaça crianças e adolescentes
A exposição de crianças e adolescentes nas redes sociais tornou-se um dos problemas mais complexos da era digital. Essa realidade é resultado da chamada "Grande Reconfiguração da Infância", segundo Jonathan Haidt revelou em seu livro “A Geração Ansiosa”. Essa reconfiguração foi um processo que ocorreu intensamente entre 2010 e 2015, quando a infância baseada em brincadeiras foi dramaticamente substituída pela infância baseada em telefones. Em menos de meia década, smartphones e redes sociais passaram de novidades a elementos centrais da vivência infantil, transformando radicalmente como as crianças crescem, aprendem e se relacionam. A questão vai muito além do simples uso de dispositivos eletrônicos. A exposição pode ser passiva – quando pais compartilham imagens e informações dos filhos sem seu consentimento –, ativa – quando os próprios menores se expõem nas plataformas digitais – ou envolver situações extremas e criminosas como aliciamento e exploração sexual online. Essa multiplicidade de formas torna o problema particularmente desafiador para famílias, educadores e legisladores. Essa é a avaliação do mestre em Ciência da Computação pela UFRGS, professor universitário e coordenador de TI da Setrem, Vinicius Serafim, que faz uma explanação ampla sobre o tema ao Jornal Semanal.

Quando os pais são o problema: o sharenting
O "sharenting" – termo que combina "share" (compartilhar) e "parenting" (parentalidade) – tornou-se uma das principais formas de exposição infantil. Trata-se da prática de pais compartilharem fotos, vídeos e informações detalhadas sobre seus filhos nas redes sociais, muitas vezes desde o nascimento ou mesmo antes, com imagens de ultrassom.
Essa exposição levanta questões jurídicas e éticas sérias sobre violação dos direitos da personalidade dos menores, incluindo privacidade, imagem, intimidade e respeito. As crianças, que não podem consentir com essa exposição, têm sua identidade digital construída por terceiros antes mesmo de desenvolverem consciência sobre o que isso significa.
As formas mais arriscadas dessa prática incluem o "oversharenting" – o compartilhamento excessivo e detalhado da rotina, localização e características da criança – e a "babyveillance", vigilância constante compartilhada publicamente. Quando essa exposição ganha contornos comerciais, com o uso da imagem da criança para fins publicitários ou lucro em plataformas, configura-se o que especialistas consideram abuso na autoridade parental.
Paralelamente ao sharenting, as crianças e adolescentes também se expõem ativamente nas redes. A ausência de supervisão parental efetiva facilita essa exposição, criando um cenário de vulnerabilidade a conteúdos inadequados, aliciamento e outras ameaças digitais.
Os quatro danos fundamentais
A exposição excessiva às redes sociais e smartphones está diretamente ligada ao que especialistas chamam de "Geração Ansiosa" – uma epidemia internacional de doenças mentais que afeta crianças e adolescentes. O uso inadequado das plataformas digitais está consistentemente associado ao desenvolvimento de transtornos como ansiedade, depressão e distúrbios alimentares em jovens ao redor do mundo.
A infância baseada em telefones prejudica o desenvolvimento infantil através de quatro mecanismos fundamentais que atuam de forma interconectada:
Privação de sono: O uso de telas tarde da noite é causalmente disruptivo para o sono. A luz azul emitida pelos dispositivos interfere na produção de melatonina, o hormônio que regula o ciclo do sono. Para crianças e adolescentes, cujos cérebros estão em desenvolvimento crítico, a falta de sono adequado prejudica funções cognitivas essenciais, consolidação de memória, regulação emocional e desenvolvimento cerebral saudável. Dormir bem não é luxo – é necessidade biológica fundamental para o crescimento.
Privação social: Cada hora gasta em telas é uma hora subtraída das interações sociais presenciais, das brincadeiras ao ar livre, dos jogos em grupo e das conversas face a face. O aumento da imersão nas redes sociais cria um paradoxo cruel: quanto mais "conectados" digitalmente, mais solitários os jovens se sentem. As interações online não substituem adequadamente o aprendizado social que ocorre através do contato físico, da leitura de expressões faciais, do manejo de conflitos pessoais e da construção de relacionamentos profundos. Essa privação pode levar à solidão crônica e depressão.
Fragmentação da atenção: O bombardeio constante de notificações, mensagens, atualizações e o design hiperestimulante das plataformas fragmentam brutalmente a capacidade de concentração. O cérebro jovem, treinado a responder a estímulos rápidos e recompensas imediatas, perde progressivamente a habilidade de sustentar a atenção em tarefas mais longas e complexas. Isso afeta diretamente o aprendizado profundo, a capacidade de resolver problemas complexos e o desenvolvimento do pensamento crítico – habilidades essenciais para o sucesso acadêmico e profissional.
Vício: As plataformas de redes sociais não são neutras – são deliberadamente projetadas para maximizar o engajamento através de truques psicológicos sofisticados. O uso de reforço variável (quando você não sabe quando receberá curtidas, comentários ou mensagens) explora os mesmos mecanismos cerebrais ativados por jogos de azar. Adolescentes são particularmente vulneráveis porque seu córtex pré-frontal – a região cerebral responsável pelo autocontrole, planejamento e tomada de decisões – não está completamente maduro até meados dos 20 anos. Enquanto os sistemas de recompensa já estão plenamente desenvolvidos na adolescência, os sistemas de controle ainda não, criando uma tempestade perfeita para comportamentos viciantes.
Meninas na linha de frente
Embora meninos e meninas sofram com a exposição digital, as redes sociais causam danos maiores e mais consistentes em meninas e jovens mulheres. A dinâmica da comparação social – fenômeno psicológico onde constantemente nos medimos em relação aos outros – é amplificada exponencialmente nas plataformas digitais.
Meninas são bombardeadas com imagens filtradas, editadas e cuidadosamente selecionadas que criam padrões de beleza completamente inatingíveis. Essa exposição constante a ideais irreais contribui significativamente para o desenvolvimento de ansiedade, depressão e, particularmente, transtornos alimentares. A busca desesperada por aceitação através de curtidas e comentários torna-se uma armadilha psicológica difícil de escapar.
O cyberbullying representa outra face dessa violência digital, afetando desproporcionalmente as meninas. Diferente do bullying tradicional que terminava ao final do dia escolar, o cyberbullying é inescapável – invade a casa, o quarto, persegue a vítima 24 horas por dia. As consequências psicológicas podem ser devastadoras e duradouras.
Outro fenômeno preocupante é como doenças psicogênicas e distúrbios de saúde mental se espalham através das redes sociais entre meninas adolescentes. Comportamentos e sintomas podem se propagar rapidamente através de comunidades online, criando surtos de condições como tiques, transtornos alimentares e automutilação.
O abandono digital – a falta de supervisão parental efetiva – deixa jovens expostos a interações perigosas, facilitando práticas criminosas como aliciamento e exploração sexual online.
‘A mediação parental – que vai muito além de controle e inclui diálogo constante, educação digital e definição clara de limites – é absolutamente crucial. Famílias precisam de apoio para navegar neste território complexo.’
Vinicius Serafim
A resposta do Brasil: a Lei Felca
Diante desse cenário preocupante, o Brasil deu um passo legislativo importante em setembro de 2025 ao sancionar a Lei Felca (Lei nº 15.211/2025), conhecida como Estatuto Digital da Criança e do Adolescente. A lei surgiu após denúncias feitas pelo youtuber Felca sobre casos de exploração de menores em ambientes digitais, catalisando um debate nacional sobre o tema.
A legislação se aplica a todo serviço tecnológico que tenha acesso provável por crianças e adolescentes no território brasileiro, estabelecendo regras claras e punições severas para plataformas que não cumpram suas determinações.
Entre as medidas mais significativas estão as ferramentas obrigatórias de supervisão parental, que incluem relatórios detalhados de uso e opções de restrição de horários. Pais e responsáveis ganham instrumentos legais para acompanhar e limitar o tempo que seus filhos passam online.
A publicidade direcionada a menores também foi vedada, reconhecendo que crianças e adolescentes não têm maturidade cognitiva para processar adequadamente técnicas persuasivas sofisticadas. Essa lei entrará em vigor em março do ano que vem.
O caminho à frente: reformas fundamentais
A Lei Felca é um avanço importante, mas a legislação isolada não resolve um problema tão complexo. A proteção eficaz das crianças exige uma abordagem multidisciplinar que rompa com o que especialistas chamam de "problemas de ação coletiva" – situações onde a ação individual é difícil ou ineficaz, mas a coordenação coletiva traz benefícios substanciais para todos.
Segundo Haidt, quatro cuidados são considerados fundamentais para reverter a tendência da Geração Ansiosa:
1. não dar smartphones antes do ensino médio. Dispositivos básicos para comunicação são suficientes para crianças.
2. não permitir redes sociais antes dos 16 anos, respeitando o desenvolvimento cognitivo e emocional.
3. implementar escolas sem celular, restaurando ambientes de aprendizado focados e interações sociais genuínas.
4. promover muito mais brincadeiras não supervisionadas e autonomia na infância real, no mundo físico.
É essencial desenvolver programas abrangentes de educação digital nas escolas e capacitar não apenas professores, mas familiares e profissionais de saúde sobre os riscos reais da exposição digital excessiva.
O problema não chegou sem aviso
Há cerca de 13 ou 14 anos, eu realizei por meio da Setrem diversas palestras nas escolas de Três de Maio e região, falando exatamente sobre o risco da exposição das crianças e adolescentes nas redes sociais (inclusive para pais e mães). De lá para cá, o que foi motivo de alerta acabou sendo normalizado (aqui e no mundo) e os problemas se avolumaram de tal forma que ficou difícil serem ignorados. Agora, há cerca de três anos, com a popularização da Inteligência Artificial, estamos identificando novos riscos decorrentes do paradoxal isolamento provocado pelas redes sociais, entre eles, a substituição das relações com seres humanos pelas relações com personagens gerados por inteligência artificial.
A tecnologia não deve ser tratada como inimiga ou como algo que somente traz problemas, mas sim como qualquer outra ferramenta cujas utilidades e riscos devem ser conhecidos para que sua aplicação seja a mais adequada e segura possível.
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