ECA completa 30 anos com conquistas e desafios

Criado em 1990 com o objetivo de proteger e garantir direitos a crianças e adolescentes, o Estatuto tem falhas

ECA completa 30 anos com conquistas e desafios
Regulamentado pela lei 8.069/1990, é uma das mais avançadas ferramentas legais para proteção integral dos direitos da criança e do adolescente

O Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA – completou 30 anos no dia 13 de julho. Regulamentado pela lei 8.069/1990, é uma das mais avançadas ferramentas legais para proteção integral dos direitos da criança e do adolescente. O Jornal Semanal conversou com a juíza da 2ª Vara Judicial da Comarca de Três de Maio, Priscilla Danielle Varjão Cordeiro, e com a promotora de Justiça da 2ª Promotoria de Justiça de Três de Maio, Carolina Zimmer, sobre o significado destes 30 anos do ECA na garantia dos direitos da Criança e do Adolescente.
De acordo com a juíza de Direito da Comarca, Priscilla Danielle, o Estatuto da Criança e do Adolescente definiu a criança e o adolescente como sujeitos de direitos, para os quais foram fixadas medidas especiais de proteção e assistência a serem executadas, conjuntamente, pela família, comunidade e Poder Público. “Desse modo, o ECA traçou diretrizes a serem executadas levando em consideração a condição peculiar de desenvolvimento em que se encontram crianças e adolescentes, reafirmando a necessidade de proteção absoluta de seus direitos, além de assegurar medidas socioeducativas de responsabilização dos adolescentes que incorrerem em atos infracionais”, explica.
Com seis anos de atuação na área da Infância e Juventude, a promotora de Justiça, Carolina Zimmer, afirma que a criação do ECA, há 30 anos, representou uma mudança de paradigma. Ela cita a nota pública do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – Conanda – do aniversário do ECA, que diz que tanto o artigo 227 da Constituição Federal, quanto o ECA têm seus fundamentos na normativa internacional, considerando a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e a Declaração Universal dos Direitos da Criança (1959), que tratam dos direitos fundamentais e da proteção integral de crianças e de adolescentes.
 

Priscilla Danielle Varjão Cordeiro,  Juíza da 2ª Vara Judicial de Três de Maio

 

Carolina Zimmer, promotora de Justiça da 2ª Promotoria de Justiça de Três de Maio

 

O ECA reconheceu que crianças e adolescentes são sujeitos de direitos e não mais meros objetos de intervenção da família ou da sociedade

Para a juíza, o ECA proporcionou muitos avanços na promoção dos direitos das crianças e dos adolescentes. “Primeiramente, reconheceu que crianças e adolescentes são sujeitos de direitos e não mais meros objetos de intervenção da família ou da sociedade. Além disso houve significativo avanço nas políticas públicas, notadamente na política de atendimento, podendo ser constatado no trabalho dos Conselhos Tutelares, no planejamento desenvolvido pelos Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente, nas Varas Judiciais, nas Promotoria de Justiça e nas Delegacias de Polícia especializadas”, argumenta. Segundo ela, o Estatuto também conferiu papel fundamental à Justiça da Infância e da Juventude, acionada principalmente pelo Ministério Público, nas situações em que o administrador público não cumpre seu dever – institucional e indelegável – na implementação dos direitos previstos tanto no Estatuto, como na Constituição Federal.
A promotora elenca como maior avanço a doutrina da proteção integral. “Diferentemente da doutrina da situação irregular, em vigor antes do ECA, o adolescente era estigmatizado como um mero objeto de direitos; já na doutrina da proteção integral, o adolescente ganha status de sujeito de direitos. Dito de forma bem pragmática, a Doutrina da Proteção Integral caracteriza-se pela amplitude de sua proteção”, explica.

 

Os maiores desafios
Atuando desde 2014 como Promotora de Justiça com atribuição na área da Infância e Juventude, Carolina destaca que há necessidade de evoluir mais, especialmente no que tange às medidas socioeducativas (que equivale à pena aplicada aos maiores de idade), conferidas aos adolescentes que cometem atos infracionais (condutas equiparadas aos crimes cometidos pelos maiores de idade). “Nessa toada, li um artigo, recentemente, redigido por uma delegada de polícia, cujo título era ‘Novos Espartanos’, em que consta uma opinião com a qual comungo, do seguinte teor: ‘O Estatuto da Criança e do Adolescente é talvez o instrumento legislativo mais falho na seara penal’, fazendo uma crítica ao fato de que o ECA prevê punição máxima de três anos de internação para os infratores, não importando a hediondez do ato infracional”, argumenta Carolina.
A juíza Priscilla Danielle concorda com os problemas das medidas socioeducativas. “O sistema socioeducativo superlotado, não é capaz de proporcionar a reabilitação adequada para o adolescente em conflito com a lei, de modo que o trabalho de ressocialização do adolescente deve vir acompanhado de ações mais amplas, a fim de evitar que o adolescente cumpra a medida socioeducativa e retorne ao mesmo contexto, voltando a praticar novos atos infracionais”.
Carolina elenca como maiores desafios para a efetiva e integral implementação do ECA, a necessidade de uma mudança de cultura e de atitude por parte dos operadores, o que, segundo ela, não é uma tarefa fácil nem ocorre da noite para o dia. “Ainda, do mesmo modo, há uma necessidade de alteração de cultura por parte dos pais, visto que, para a efetividade na aplicação da legislação protetiva necessita participação, integração, colaboração e articulação da rede de proteção da infância e juventude, ou seja, dos operadores, com a sociedade civil em geral e com os genitores, em particular”.


Casos recorrentes preocupam
A Comarca de Três de Maio abrange seis municípios - Três de Maio, Alegria, Boa Vista do Buricá, Independência, Nova Candelária e São José do Inhacorá. Segundo Carolina, em virtude de suas peculiaridades, os municípios possuem realidades e demandas bem distintas. “Em virtude de ser o maior dos seis municípios, Três de Maio exige uma maior atenção e possui números mais significativos, tanto em relação a demandas envolvendo a seara protetiva - medidas de proteção aplicáveis às crianças e adolescentes, e também aos pais, em virtude da violação de direitos por atitudes comissivas (agir) e/ou omissivas (deixar de agir) -, quanto na prática de atos infracionais”. Já o município de São José do Inhacorá é o que apresenta os menores números.
Conforme a promotora, entre os casos mais recorrentes, há um número expressivo de abusos sexuais, especialmente intrafamiliar, bem como de adolescentes envolvidos na prática de atos infracionais e, em especial, com o tráfico de drogas e, até mesmo faccionados, o que é muito preocupante.
“Não se pode deixar de mencionar as situações de dificuldade/negativa de colaboração e engajamento do núcleo familiar, e, inclusive, de transferência de responsabilidades, que dificultam sobremaneira a atuação de toda rede de proteção da infância e juventude, desde dentro da sala de aula, passando pelo Conselho Tutelar, Assistência Social, até o Ministério Público e o Poder Judiciário. Toda essa problemática redunda no ajuizamento de ações visando à aplicação de medidas de proteção em favor das crianças e adolescentes”, explica a promotora. Ela também destaca a necessidade de realização de um trabalho conjunto de toda rede de proteção da infância e juventude dos municípios. 
A juíza Priscilla Danielle aponta o desconhecimento do Estatuto como uma dificuldade a ser enfrentada. “A lei precisa ser conhecida pela comunidade, sobretudo pelas crianças e adolescentes, para que conheçam os seus direitos fundamentais e possam pleitear a sua efetivação”, ressalta. Segundo ela, a ausência na prioridade de investimentos também é um entrave para a efetiva aplicação do Estatuto, pois, muitas das vezes, não há a destinação de recursos públicos na proporção prevista na lei, para o desenvolvimento de políticas públicas adequadas. 
A Comarca de Três de Maio possui 217 processos no Juizado da Infância e Juventude, sendo que os tipos mais recorrentes são o boletim de ocorrência circunstanciado e os processos de natureza cível.

 

Dificuldades trazidas pela pandemia
A promotora Carolina destaca o período peculiar trazido pela pandemia e das dificuldades advindas do isolamento social e decorrentes do desemprego, da redução da renda familiar, da falta de segurança e das condições precárias de moradia, além do adoecimento mental e físico. “Essa situação já tem provocado o aumento de violações de direitos, que também atingem crianças e adolescentes, tais como maus-tratos, abuso e exploração sexual, inclusive a que ocorre por meio de aliciamento digital para fins de disseminação de material sexual”, explica.
A promotora citou a opinião da colega, promotora de justiça Helen Crystine Corrêa Sanches, que possui larga experiência na área da Infância e Juventude em Santa Catarina, sobre o atual momento. "A pandemia impactou diretamente os direitos das crianças e adolescentes pois, na medida em que se restringiu o convívio e a interação deles ao espaço doméstico, criou novos obstáculos à revelação de violação de direitos relacionados aos maus-tratos, aos castigos corporais e à violência e ao abuso sexual, além das dificuldades relacionadas ao processo educativo por meio virtual e ao acesso às políticas públicas de prevenção relacionadas à garantia do direito à saúde, à alimentação, ao convívio familiar, dentre outras, reforçando a necessidade do debate e reflexão das estratégias de enfrentamento emergenciais para o seu atendimento adequado e prioritário, que contem com a participação deles, como preconiza o Estatuto da Criança e do Adolescente".

 

Projeto piloto Paz na Escola
O projeto piloto desenvolvido em Três de Maio pelo Ministério Público, Poder Judiciário e Defensoria Pública, denominado Paz na Escola, busca inserir adolescentes indicados pelas escolas, assim como seus pais, em atividades e obrigações, com a finalidade de evitar dificuldades relacionadas à indisciplina e agressividade no âmbito escolar, direcionar e auxiliar os genitores dos referidos alunos, além de auxiliar no encaminhamento e inserção dos adolescentes no mercado de trabalho.
O projeto conta com a colaboração da Brigada Militar, Delegacia de Polícia, secretarias municipais de Assistência Social e Educação, ACI, Conselho Tutelar, Conselho Municipal Antidrogas, Procuradoria-Geral do Município de Três de Maio, 17ª CRE e direção das escolas Glória Veronese, Cardeal Pacelli, Germano Dockhorn e Castelo Branco. O projeto já teve duas etapas e, só não iniciou a terceira em razão da pandemia.

 

O importante papel do Conselho Tutelar
O Conselho Tutelar é um órgão do município que tem como principal função zelar pelos direitos das crianças e adolescentes. Foi criado de forma conjunta ao Estatuto da Criança e do Adolescente, determinados na Lei nº 8.069 de 13 de julho de 1990. É um órgão permanente, com autonomia funcional, ou seja, ele não é subordinado a nenhum outro tipo de órgão governamental.
O Conselho Tutelar é composto por membros eleitos pela comunidade para um período de três anos e, entre as obrigações está atender crianças e adolescentes, além de prestar aconselhamento aos pais e responsáveis. Desse modo, o trabalho acontece, principalmente, a partir de denúncias. Então, é importante que o Conselho seja avisado sempre que existir algum sinal de que menores estão em condições de risco ou abuso, seja em casos de violência emocional ou física.
O Jornal Semanal conversou com os seis Conselhos Tutelares da Comarca de Três de Maio para conhecer um pouco da realidade de cada um deles.


Três de Maio
Em Três de Maio, o Conselho Tutelar foi implantado em 28 de outubro de 1992. De acordo com o colegiado, formado pelas cinco conselheiras, a procura por atendimento é crescente e tem aumentado ainda mais este ano, devido a situação atípica da pandemia. O órgão busca a primazia de dar proteção integral e o socorro em quaisquer circunstâncias, às crianças e adolescentes.
Os atendimentos realizados pelo Conselho Tutelar do município chegam tanto por denúncias, quanto por pedidos de ajuda, seja ela presencial ou via telefone. “As demandas que chegam até nós, são acompanhadas e encaminhadas para a Rede de Proteção, quando necessário. O atendimento e acompanhamento só se encerram quando a criança e o adolescente completar 18 anos”, explica o colegiado.
O grupo explica que o Conselho Tutelar é um órgão permanente e autônomo, não jurisdicional encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente, deferidos na Lei 8.069 de 13 de julho de 1990, no artigo 131, do ECA. “O que precisa ficar claro é que: ‘permanente’ significa que o que foi criado e garantido por lei não se exclui; ‘autônomo’ refere-se a autonomia do trabalho, das decisões em colegiado que só podem ser revistas pelo Poder Judiciário; ‘não jurisdicional’ que o Conselho Tutelar não tem o poder e a autonomia de mudar decisões judiciais.”
O Conselho Tutelar é formado por cinco conselheiras e todas as decisões são tomadas pelo colegiado. "O Conselho Tutelar não veio para tirar o direito dos pais ou responsáveis pela criança e o adolescente, e sim cumprir, na integralidade, os direitos da criança e adolescente”, esclarece o colegiado. Os telefones do Conselho Tutelar são 3535-1725 e 9 9926-8055.


Alegria 
O Conselho Tutelar foi implantado em 1993. Não existe uma estimativa exata do aumento de atendimentos desde sua criação, porém a cada mês há um aumento de 45% a 65% na busca por atendimento. A situação mais comum envolve conflitos familiares e a maioria dos atendimentos acontecem após o Conselho receber denúncias. A faixa etária mais atendida é de zero a 12 anos.
De acordo com o colegiado, o trabalho é realizado sempre buscando zelar e garantir os direitos das crianças e dos adolescentes. Os telefones do Conselho Tutelar são 3536-1215 e 9 9991-5104.


Boa Vista do Buricá
O Conselho Tutelar foi implantado em 1993. Não há uma estimativa concreta sobre os números de atendimento desde o início. Atualmente, em média, são realizados 100 atendimentos mensais, que vão desde agressão psicológica e física, evasão escolar, abandono parental, vulnerabilidade e infração de direitos. Os atendimentos feitos chegam tanto através de denúncias, como por pedidos de ajuda. As idades com maior frequência estão na faixa de quatro a 16 anos. Os telefones do Conselho Tutelar são 3538-1227 e 9 9131-5597.


Independência
Foi implantado em 1994 e desde então, o número de atendimento aumentou cerca de 150%. “No início era uma média de 25 atendimentos mensais. Hoje são cerca de 70 casos”, explica a conselheira tutelar Elisiane Eichkoff Meller.
Os casos mais atendidos são maus tratos, abuso sexual, drogas e negligência nas atividades escolares. A maioria dos casos chegam através de denúncias e a faixa etária mais atendida é dos 11 aos 16 anos. Os telefones do Conselho Tutelar são: 3539-1255 e 9 9962-7018.


Nova Candelária 
O Conselho Tutelar foi implementado em 2001. Desde sua criação, o número de atendimento aumentou, consideravelmente, ao longo dos anos. A média mensal de atendimento varia muito, pois depende do tipo de atendimento e o período do ano. Casos mais graves, de três a cinco por mês; casos mais simples de 20 a 25. Os problemas mais frequentes são negligência dos pais, questões escolares e conflitos entre pais que se separam e não se entendem sobre guarda, visitas e pensão dos filhos.
A maioria dos casos chega através da Rede de Atendimento, via Cras, Saúde e escolas e, também, por pedidos de ajuda. O telefone do Conselho Tutelar é 9 9964-8215.


São José do Inhacorá
O Conselho Tutelar foi implantado em 14 de março de 2000. Segundo o colegiado os casos vêm aumentando no decorrer dos anos, em torno de 10%. Em média, são sete atendimentos mensais.
As conselheiras destacam que o Conselho Tutelar faz o acompanhamento e monitoramentos das famílias e também orienta e auxilia nas medidas a serem tomadas.
Os casos mais frequentes são os que necessitam de orientação e apoio. A grande maioria dos atendimentos chega ao Conselho através de denúncias anônimas. A média de idade com maior frequência de atendimento é a faixa entre 6 a 13 anos. O telefone do Conselho Tutelar é 9 8439-9991.