A vida dos três-maienses pelo mundo afora

A Áustria, país da Europa Central, foi o destino escolhido pela pesquisadora em nível de pós-doutorado Cristiane Cecatto por aliar boas oportunidades de emprego e excelente qualidade de vida

A vida dos três-maienses pelo mundo afora
‘O profissional com doutorado é muito mais valorizado na Áustria que no Brasil, sem contar a qualidade de vida, a segurança e o baixo custo de vida, que pesaram na hora de optar em morar fora do Brasil’, diz a Dra. Cristiane Cecatto - Fotos arquivo pessoal

Ao terminar o Ensino Médio na Setrem, Cristiane Cecatto, 32 anos, filha de Lori Lauer Cecatto e Olivo Cecatto transferiu residência para Porto Alegre para cursar a faculdade de Farmácia, pela UFRGS. Já durante a graduação, Cristiane se interessou por pesquisa científica e começou a atuar como bolsista de iniciação científica em um laboratório de bioquímica em 2010.


Com a conclusão da graduação, em 2013, ela iniciou o Mestrado em Ciências Biológicas: Bioquímica, pela mesma universidade, concluído em 2016.  Logo após iniciou o doutorado no mesmo departamento, que concluiu em 2019. 
Para Cristiane, terminar um doutorado no Brasil não é fácil, mas depois de superar esse desafio, vem um desafio ainda maior, que é encontrar um emprego.


Com um diploma de doutora na mão, Cristiane foi em busca de uma colocação profissional. “A opção mais óbvia e que eu teria sentido muita satisfação é me tornar professora na universidade onde estudei, mas a concorrência é muito alta. A maioria dos doutores na minha área passam a atuar como pós-doutorando, que seria uma oportunidade para desenvolver uma pesquisa e também entrar como professora. No entanto, essa posição no Brasil não é valorizada e tratada como mais uma etapa de ‘estudante’”, lamenta.  


Já casada com o porto-alegrense Lucas Matturro, 36 anos, o casal começou a cogitar outras possibilidades, inclusive fora do Brasil, priorizando a busca de uma melhor qualidade de vida, morar em um ambiente mais seguro, enfim, ter uma vida mais tranquila. 


Cristiane revela que o sonho de morar no exterior era mais do marido do que dela. “Eu já estava morando longe dos meus pais e da minha família por muitos anos. Então, estava com o pensamento de voltar para perto deles, mas ao terminar o doutorado e não conseguir encontrar uma opção de trabalho e de viver sob muito estresse, com medo da violência (morávamos em Porto Alegre), com sentimento de que iria trabalhar para sobreviver, comecei a mudar meu pensamento. E como o doutor é muito mais valorizado aqui (na Áustria), esse sonho também passou a ser meu”, destaca Cristiane.
Após muitas pesquisas, levando em conta oportunidade de emprego na área na qual estava estudando e qualidade vida, a escolha da pós-doutoranda foi morar em Innsbruck, capital do estado do Tirol, na Áustria.  A mudança do casal para o país da Europa – um dos mais ricos em PIB per capita e com o sexto melhor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do mundo – ocorreu em janeiro de 2020.  
 

Localizada em uma região montanhosa, as paisagens do país são de tirar o fôlego. Nos fins de semana, Cris e Lucas aproveitam para conhecer novos lugares

 

 

Maiores desafios

Para Cristiane, a língua, de longe, é o maior desafio. A língua oficial é o alemão, porém, por ser uma região montanhosa, existem muitos dialetos. “É muito difícil conseguir aplicar o que se aprende na sala de aula no cotidiano porque simplesmente não dá para entender o que eles falam”.


Segundo Cristiane, a burocracia na Áustria é bem forte, e nisso a língua também prejudica. “A maioria fala inglês, mas, se você falar alemão, eles te atendem muito melhor.” 


Outro grande desafio ao chegar na Áustria foi que Lucas, mesmo com formação em Educação Física e MBA em Gestão de Pessoas, só conseguiu visto para trabalhar como autônomo. “Em uma cidade onde a língua é desafiadora, onde não se conhece ninguém, é muito complicado ser autônomo. Ele teve esse visto por dois anos, e durante esse período fez alguns ‘bicos’ ajudando a montar móveis e trabalhando com redes sociais de lojas de brasileiros aqui em Innsbruck. Em janeiro de 2022, o Lucas obteve um visto que tem amplo acesso ao mercado de trabalho”, comemora Cristiane.


Valorização profissional e qualidade vida são as maiores conquistas
A valorização profissional e a qualidade de vida nem se compraram com o Brasil. “Me sinto muito valorizada no trabalho, consigo ter um bom equilíbrio entre vida pessoal e profissional. Aqui, por exemplo, ninguém leva trabalho para casa, ninguém fica depois do horário, ninguém te liga fora do horário de trabalho perguntando alguma coisa. Outra coisa interessante é que não existe uma disparidade de salários entre os cargos, como no Brasil. Minha chefe não ganha muito mais que eu, ao contrário do Brasil, onde cargos de chefia muitas vezes ganham o dobro. A qualidade de vida que a gente tem aqui é a nossa maior conquista, pois isso nos deixa com mente e corpo mais saudáveis para fazer o que a gente gosta”, considera. 


Outra grande vantagem de morar na Áustria, segundo Cris, é que os gastos com comida e material de higiene não pesam no bolso para quem recebe em Euro. “Com menos de 300 Euros é possível fazer todas as compras do mês, incluindo cervejas, vinhos. Já o aluguel é caro, principalmente em Innsbruck, mas o dinheiro na mão aqui rende bem mais que no Brasil. Vivemos por dois anos basicamente com meu salário de pós-doutoranda sustentando nós dois, morando em um lugar muito legal, e ainda fizemos uma ou outra viagem pela Europa, além da viagem ao Brasil em dezembro no ano passado”.


Segundo Cristiane, no Brasil, essa situação seria complicada, pois o salário de pós-doutorando é, em média, R$ 4.300,00. “Com toda certeza não seria possível a mesma qualidade de vida que temos aqui”, compara. 


O casal enfatiza que não está em busca de acumular dinheiro para adquirir bens materiais, mas sim experiências e qualidade de vida. “Aqui é possível viver com pouco, ter uma excelente qualidade de vida e se sentir muito feliz, além de guardar um dinheirinho para fazer uma viagem ou para visitar a família. Os momentos que passamos juntos são a coisa mais preciosa que podemos ter, porque o tempo não se compra”.


Cristiane faz uma comparação entre o preço de um iPhone 13, entre o Brasil e na Áustria. Lá custa em média 800 Euros, ou seja, menos que a metade do salário médio pago do país. Já no Brasil, o mesmo aparelho custa em torno de R$ 7 mil, quase seis salários mínimos. 


 A Áustria não tem um salário mínimo oficial como no Brasil. Tem tabelas que norteiam as categorias e a média mensal é em torno de 1.900 Euros, (já com as retenções e impostos descontados), cerca de R$ 10.500. A média salarial de um pedreiro é de R$ 1.450 Euros, algo em torno de 8 mil reais. 


Bicicleta é o meio de transporte mais usado

No geral, a bicicleta é o meio de transporte mais usado no país, principalmente nas cidades menores. “As pessoas vão de bicicleta para praticamente todos os lugares: passeios, trabalho, compras. Quando a neve não permite, as pessoas se locomovem mais de ônibus. Apesar dos carros serem bem bonitos e confortáveis, não é uma cidade que tem muito trânsito.” 

 

A receptividade para os estrangeiros

A receptividade para estrangeiros foi exatamente o que Cristiane e Lucas esperavam. “O povo austríaco é receptivo aos turistas, mas no dia a dia é bastante fechado. Não temos nenhum amigo próximo que seja austríaco. Temos muitos amigos brasileiros e alemães, da América Latina”.


Cristiane e Lucas fizeram muitas amizades no país de forma um tanto inusitada. Foi através de um grupo no Facebook, chamado Brasileiros no Tirol, que convida quem tem interesse em jogar futebol. “No início quase ninguém se conhecia.  A cada semana, cada um trazia mais pessoas e assim o grupo foi crescendo. Além de brasileiros, o grupo é formado por portugueses, austríacos, alemães, pessoas de vários países da América Latina e dos Estados Unidos. Com isso, o grupo começou a ficar grande”, conta.


Através do grupo de futebol, o casal conheceu a maioria dos amigos. Hoje, se encontram todos os sábados pela manhã para jogar. “Não importa se é verão ou inverno. No verão jogam em campo aberto e no inverno, com neve, jogam em uma quadra fechada.”

 

Incentivo do governo para grupos de hobby

Com o aumento no número de integrantes, o grupo do futebol decidiu fundar um ‘Verein’ (uma associação registrada, que passa a ter estatuto jurídico). “É um programa de incentivo que o governo da Áustria dá para atividades, não só física, mas outros tipos de hobby também”, explica.


A associação foi cadastrada no governo e, com isso, passou a receber auxílio anual em dinheiro para ser usado de forma livre no grupo de hobby. Conforme Cris,  o grupo cresceu tanto que, neste ano, foi realizado um mundialito, tipo uma copa do mundo, entre os colegas do ‘Verein’. 


Plano de saúde público

Cristiane conta que toda pessoa que mora na Ástria, nativa ou estrangeira, precisa pagar o ‘plano de saúde público’. Sem o plano, o estrangeiro não ganha o visto.  “O meu já é descontado em folha, e para o Lucas eu paguei separado. Não é muito caro, mas tem que considerar esse valor. Por esse plano de saúde, quase tudo é acessível, exceto tratamentos estéticos. Porém, os austríacos têm uma visão diferente de estética que os brasileiros. Por exemplo, aqui uma limpeza dentária é considerada estética”, revela


Até agora o casal não necessitou de atendimento, somente de uma visita ocasional ao médico. “Nunca usamos a emergência, então não sei como é, mas falam que o atendimento é muito bom”, conta.


Lojinha com produtos brasileiros e clima

Com relação à alimentação, Cristiane diz sentir falta da “carne boa de churrasco que tem na casa dos meus pais! Mas como uma boa descendente de alemães, não tive dificuldade, gosto de tudo”. Ela e o marido já conhecem os caminhos para não sentir tanta falta do sabor brasileiro. “Nós tínhamos aqui em Innsbruck uma lojinha de produtos brasileiros que vendia inclusive erva-mate, mas que acabou fechando. Hoje não temos mais a lojinha oficial, mas ainda assim encontramos na cidade pão de queijo, açaí, poupa para sucos, mandioca frita. Já os produtos não industrializados, como mandioca e feijão preto, é possível encontrar nas lojas asiáticas.”

Outra opção são as compras pela internet ou ir até Munique, que é bem pertinho, onde tem várias lojas com produtos brasileiros, como erva-mate. 


Com relação aos pratos típicos, os mais populares são Wiener Schnitzel (escalope à moda de Viena), que se assemelha ao bife à milanesa no Brasil, e Tiroler Gröstl, que tem alto teor calórico e recomendado para os meses mais frios. O prato à base de batatas e carne de porco é frito em manteiga derretida, temperada com sal, pepe, manjerona, sementes de cominho e salsa.


Já o clima é bem diferente do Brasil. No inverno, além da temperatura abaixo de zero – a menor temperatura registrada desde que o casal mora no país foi 15 graus negativos –, os dias são bem curtos. “No inverno, às 15h30min o sol já se põe, pois a cidade fica atrás das montanhas, o que colabora para escurecer mais cedo ainda. Mas apesar de ainda não amar o inverno como os austríacos, acho que esse nunca foi um problema para nós. Todas as casas têm aquecimento, as roupas são mais bem projetadas. Já no verão os dias são bem longos, amanhece por volta das 6h e às 21h ainda é claro, com temperaturas que podem ultrapassar os 30 graus”, explica Cristiane.


O dia a dia

A jornada de trabalho de Cristiane é de segunda a quinta-feira, das 8h às 17h, e na sexta-feira das 8h às 14h. “Dois dias na semana faço home office. A empresa fica a 20 minutos a pé do meu apartamento e, geralmente, vou de bicicleta se não está muito frio ou com neve. No fim da tarde gosto de ir nadar (são inúmeros os clubes que oferecem), ler um livro ou assistir alguma coisa. Para os finais de semana sempre tem muitas opções, como por exemplo caminhadas, conhecer novos lugares, esportes de inverno como esqui, andar de bicicleta e até um churrasquinho na “praia” no verão. Às vezes a gente só quer ficar em casa mesmo, para recarregar as energias”.

 


Sem data para voltar

Cristiane explica que o casal não tem um tempo determinado para ficar na Áustria ou voltar para o Brasil. “Apesar da saudade dos meus pais e amigos, e da vontade de pegar um ônibus e acordar pertinho deles, por enquanto não temos planos para voltar. Meu contrato de trabalho não tem prazo. Vamos decidir conforme sentirmos o que é melhor para nós”.


Logo que o casal se mudou para a Áustria, começou a pandemia de Covid-19, e só veio ao Brasil uma vez nestes dois anos. “Esperamos que daqui para frente consigamos ir todo ano”.


Perguntada sobre qual a dica para quem quer morar no exterior, Cristiane diz: “Se surgir uma oportunidade de trabalho ou estudos, venham! Mas venham de coração aberto e mente forte. Não é um mar de rosas como parece, pode ser bastante solitário, a saudade é muito grande, mas também é compensador”, finaliza.

 

No verão, piqueniques ao ar livre estão entre os programas 
preferidos do casal