Surdo pode? Pode sim!
Superar as dificuldades, traçar um caminho de conquistas e alcançar os objetivos. É assim que a três-maiense Keli Krause, 40 anos, vive a vida. Surda desde que nasceu, ela não se limitou apenas a aprender a se comunicar em Libras. Com esforço e determinação, ela realizou seus sonhos e tornou-se a primeira professora de Língua Brasileira de Sinais (Libras) da Unipampa com formação em Doutorado. Filha de Ernani e Telci Krause, a jovem vive há 9 anos em São Borja. Conheça a trajetória inspiradora da doutora Keli. Para a produção dessa reportagem, algumas perguntas foram respondidas por e-mail por Keli e outras através da interpretação de Telci.
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Descoberta da surdez
Telci Krause conta que quando a filha nasceu, nem a família e nem os médicos perceberam que ela era surda. “Só percebemos algum tempo depois, porque chamávamos ela pelo nome e ela não atendia. Somente quando a gente batia no assoalho, que era de madeira, ela olhava por causa da vibração”, conta a mãe.
A família procurou alguns médicos na época e os diagnósticos foram dos mais variados. “O primeiro disse que era desatenção, que precisava esperar até um ano de idade para fazer exames; outros diziam que era cedo para dar um diagnóstico conclusivo", relata.
Após consultar vários profissionais e fazer muitos exames, foi constatada a surdez. "No início foi um choque. A nossa percepção sobre o surdo era daquela pessoa totalmente dependente”, diz Telci.
Desde cedo, Keli teve aulas com fonoaudióloga e utilizou aparelho de surdez, o que acabou não surtindo efeito, pois ela tem surdez profunda e não DA (deficiência auditiva). “Meu marido falou: ‘nós vamos educar ela igual a outra criança’, e foi o que nós fizemos, sem superprotegê-la. Hoje ela é independente. Tem carteira de motorista, dirige, leva uma vida normal como qualquer outra pessoa”, diz a mãe, orgulhosa.
Alfabetização em Libras
Aos três anos, Keli passou a frequentar a Apae em Três de Maio. Lá, a diretora da época, Lurdinha Bender, sugeriu que a mãe que fizesse o curso de Libras para ensinar a filha.
Assim, Telci fez Magistério, aprendeu Libras e começou a ensinar Keli em casa. “Quando ela tinha três aninhos, fazíamos desenhos e, quando comecei a fazer Libras, colocamos um alfabeto datilológico (de Libras) para ela ir se adaptando. Quando ela deitava ou ia tomar mamadeira, olhava e praticava o alfabeto com as mãozinhas. Os sinais ela foi aprendendo com o tempo. Eu colocava a palavra e o sinal junto no objeto e ela ia aprendendo a se comunicar”, recorda a mãe.
Tempos depois, quando os pais tiveram conhecimento da Escola de Surdos em Santa Rosa - Apada (Associação de Pais e Amigos dos Deficientes Auditivos), Keli, na época com sete anos, passou a frequentar a escola. E Telci começou a trabalhar na escola, onde ficou por 25 anos. Atualmente, ela é aposentada.
A surdez de Keli não foi empecilho para participar de clubes de serviços desde cedo.
Como a Apada teve muito apoio do Lions Clube e do Rotary quando foi construída - o Lions Internacional doou todos os móveis da escola -, a diretora da época participava do Lions e surgiu a ideia de formar um Leo Clube de Surdos.
O clube foi formado e no ano de 2003 Keli foi a primeira presidente, sendo que o grupo realizou atividades, projetos, auxiliando crianças e a comunidade local.
Telci acompanhava a filha nos primeiros meses de faculdade
Ao concluir o Ensino Médio na Apada, em 2004, Keli prestou vestibular para Ciências de Computação, na Unilasalle (Canoas), e Sistemas de Informação, na Unijuí. Foi aprovada nos dois, porém, escolheu a Unijuí por não ter condições financeiras de morar e estudar em Canoas. Em 2005, transferiu o curso para a Setrem. “Muitas pessoas estavam curiosas, pois eu era a única acadêmica surda”, conta.
Como não havia intérprete na instituição, Telci passou a acompanhar a filha nas aulas para traduzir o conteúdo que o professor ministrava.
Por cerca de cinco meses, essa era a rotina. “Neste período foi bem puxado. Eu trabalhava na escola de surdos em Santa Rosa, retornava para Três de Maio e noite ia à faculdade para interpretar o conteúdo para minha filha”, explica a mãe.
Como o curso tinha muitos termos técnicos, voltados à informática, também dificultava a comunicação. "Mas a Keli gostava muito de estudar, tinha uma percepção muito boa e conseguia captar muito bem o conteúdo".
Novos desafios
Em 2008 Keli iniciou uma nova jornada. Começou o curso de Licenciatura em Letras/Libras, pela UFSC, polo da UFRGS em Porto Alegre. Duas vezes ao mês, nos finais de semana, ela viaja para a capital gaúcha para as aulas presenciais. Já durante a semana, cursava Sistemas de Informação na Setrem e ainda trabalhava na Escola de Ensino Médio Concórdia para Surdos, de Santa Rosa, onde atuou por 10 anos.
Keli também ministrou na Setrem cursos de extensão de Libras nos anos de 2011 e 2012.
O ano de 2012 foi especial para a jovem. Ela concluiu dois cursos superiores. No dia 3 de novembro foi a conclusão da graduação em licenciatura em Letras/Libras pela UFSC no Polo da UFRGS de Porto Alegre, com o TCC sobre 'Materiais e Dinâmicas para o Ensino de Libras para os Alunos Surdos', e no dia 8 de dezembro ocorreu a colação de grau do curso de Sistemas de Informação pela Setrem, que teve como tema do TCC Sistema Tutorial em Libras para Área de Computação.
Início na docência na Unipampa
Em 2013 iniciou a trajetória na Universidade Federal do Pampa (Unipampa) - Campus São Borja, na área de Libras. Ela foi aprovada em 1° lugar na classificação geral de professora do magistério superior da universidade.
Keli conta que, ao ser apresentada pelo diretor aos alunos (ouvintes), eles ficaram assustados, pois não sabiam como seria a comunicação.
“Mas como é a aula?” Ela relata que organizava toda a aula no datashow e aplicava o conteúdo. "Os alunos foram compreendendo e viram que não era tão difícil como eles imaginavam. A comunicação é a mesma, só muda a forma".
Como existem poucos professores surdos de Libras na região, em 2014 Keli concluiu uma pós-graduação Latu Sensu – Especialização Docência em Libras pela UTP - Universidade Tuiuti do Paraná. “Na área da educação estamos em constante busca de informações e aperfeiçoamento; faz parte do educador. Portanto, continuo buscando conhecimento mais aprofundado no ensino de Libras para os acadêmicos no Ensino Superior e também qualidade no currículo."
Mestrado e Doutorado
Em 2016 ela iniciou o Mestrado em Ciências Sociais pela Unisinos (São Leopoldo). A tese da dissertação foi “A implementação para a comunidade surda no campo dos meios de comunicação: uma análise comparativa Brasil-Argentina”.
Já mestre, Keli retornou à universidade. “Voltei com muita disposição para continuar o trabalho que amo. Quero ensinar Libras para mais pessoas, para poderem se comunicar cada vez mais”, diz.
Já o Doutorado em Ciências Sociais iniciou em 2020, na PUCRS. A tese “Política Cultural da Comunidade Surda: uma análise comparativa entre os países sul americanos”, foi defendida em dezembro de 2022. “O estudo apresenta os direitos elementares da comunidade surda como minoria, com enfoques nas práticas de políticas públicas, dentro de uma perspectiva do construtivismo social, tendo como objetivo analisar a política para comunidade surda e comparar suas mobilizações em cada país, apresentando sua estrutura social da história e sua cultura nos processos políticos, e também um sentido mais amplo de direitos de surdos no âmbito jurídico”, relata a doutora.
A tese foi um desafio para Keli, por conta da pandemia de Covid-19 entre 2020 e 2022. “Escrever esta tese de Doutorado no momento da pandemia foi desafiador. Não pude viajar para realizar a busca de informações e dados in loco. Consegui contato com alguns surdos e não surdos de diversos países que me enviaram os materiais escritos, estatísticos e elementos iconográficos, como a língua espanhola traduzida para o português”.
Também foram objeto de pesquisa pessoas estrangeiras, com o intuito de que elas pudessem repassar as fontes naturais de informações, sendo posteriormente realizadas entrevistas sinalizadas em vídeo (Lengua de Señas Uruguaya – LSU e Lengua de Señas Venezolana – LSV). “Procuramos as informações em vídeos do YouTube em línguas de sinais diferentes como: Lengua de Señas Argentina – LSA, e Lengua de Señas Paraguaya - LSPy) traduzidas para o português escrito”, explica.
Na defesa da tese, Keli revela que foi tomada pelo nervosismo. "Eu estava ansiosa para ver o que eles falariam. Quando terminei minha apresentação, os professores doutores de banca examinadora, Geder Parzinello (Unipampa), Marianne Stumpf (UFSC) e Rafael Machado Madeira (PUCRS), começaram a falar e pediram só para organizar alguns detalhes, e me elogiaram muito. A ata da tese final foi aprovada ‘com louvor’ e fiquei muito feliz”.
Línguas de sinais no mundo
A três-maiense, que já apresentou um trabalho no Uruguai, diz que as línguas de sinais são diferentes de um país para o outro.
Antes de apresentar o trabalho, Keli teve contato com uma intérprete uruguaia. Na apresentação, ela mostrava o conteúdo em português e a intérprete foi estudando para haver a troca de conhecimento. “O que facilitou é que a intérprete já conhecia o tema do trabalho”, destaca.
Outro exemplo foi de Hellen Phillips, uma surda inglesa que a família hospedou por seis meses. “Eu mostrava uma palavra no dicionário e ela mostrava o sinal da palavra na Inglaterra e o mesmo com a Libras e português. Assim, nós aprendíamos português, inglês e as línguas de sinais dos países”, relembra.
Mãe e filha, em entrevista à reportagem do Jornal Semanal. Telci interpretou a conversa enquanto Keli contava sua trajetória de vida
Comunidade surda se motiva com a trajetória de Keli
Conforme Keli, a maioria das pessoas tem dificuldade em um primeiro contato com um surdo, pois não sabe como se comunicar. "Elas geralmente escrevem em um papel, digitam no celular e nos mostram. A maioria não conhece Libras”, diz a doutora, que há 9 anos mora em São Borja. “Na cidade, as pessoas não sabiam como lidar com uma pessoa surda. Mas conforme vão conhecendo, percebem que é normal e natural, apenas a forma de se comunicar é diferente”, avalia.
Segundo Keli, muitos surdos começaram a ‘aparecer’, pois antes estavam escondidos ou não frequentavam a sociedade em geral. “Existe uma Associação de Surdos na cidade, que começou em dezembro de 2019. Quando os integrantes se encontram, fazem curso de Libras e a família participa também. Além de projetos que são desenvolvidos dentro da Universidade”, conta.
Na Unipampa há 7 cursos com a disciplina de Libras na grade curricular. Ela lembra que, no curso de Jornalismo, foi feito um telejornal, o Pampa News, que contou com uma janela em que Keli foi intérprete, traduzindo em Libras o conteúdo produzido na atividade prática do curso. “Isso foi importante para os acadêmicos do curso e para a acessibilidade”, avalia. Além disso, muitos acadêmicos que fizeram a disciplina de Libras gostaram e se identificaram, e hoje são profissionais como professores ou interpretes de surdos.
Para Keli, as pessoas que têm alguma deficiência não podem ficar acomodadas. “Elas precisam batalhar pelo seu espaço. E é importante um modelo. Muitos surdos, ao verem outro surdo trabalhando e estudando, se sentem motivados a irem em busca de seus objetivos, para perceberem que têm potencial. Os surdos têm sua família, o seu emprego, a sua casa, o seu carro, eles querem ser independentes”, salienta.
Keli conta que quando conheceu a comunidade surda de São Borja percebeu que a maioria não sabia de seus direitos. “Muitos deles me perguntavam: ‘Você tem carro?’, ‘Você dirige?’, ‘Surdo pode?’ Pode sim. Muitos se espelharam em mim e hoje estão fazendo a CNH ou já estão dirigindo”.
Acessibilidade melhorou, mas há mais para avançar
Na área de comunicação, Keli avalia que melhoraram muito as transmissões em vídeo com a legenda, mas ainda falta a tradução em Libras. “A TVE (emissora pública) possui a janela de tradução, mas emissoras privadas ainda não. O surdo que não tem uma formação em Libras tem dificuldade em entender, pois a legenda em português se torna mais difícil”, explica.
Além disso, na avaliação da doutora, ainda existe a falta de intérpretes que tenham formação na área do curso onde irão atuar, para facilitar a interpretação para os surdos”, frisa.
Para Keli, muita coisa pode e precisa ainda ser melhorada. “A acessibilidade na repartição pública tem lei, ela é bonita no papel, mas não é colocada em prática. A conscientização para a acessibilidade, para todas as deficiências, ainda precisa avançar bastante”, pontua a doutora. Já na faculdade, Keli conta que a inclusão é mais fácil, mas no ensino de base é bastante deficitário.
Outro ponto é o preconceito que ainda existe ao ver uma pessoa com deficiência querer ter uma vida normal. “Quando fui aprovada no concurso, me perguntaram: ‘Você tem certeza que quer trabalhar?’ E eu respondi: ‘sim, eu quero sim, por quê?’ A questão cultural do preconceito ainda é muito forte. Eu quero mostrar que o surdo tem capacidade”, diz.
Conforme Keli, na cidade de São Borja, toda vez que ocorre algum evento voltado aos surdos há uma divulgação ampla, para que as pessoas ouvintes enxerguem o que está acontecendo. “No curso de Ciências Sociais da PUCRS (nas aulas de doutorado), por exemplo, um grupo de seis pessoas - três surdas e três ouvintes - estudou os filósofos, sociólogos, antropólogos mais recentes que não tinham um sinal próprio, e então criou sinais para eles. Isso é muito importante para a comunidade surda, pois facilita a comunicação quando se fala de conteúdos específicos”.
Seguir no caminho dos estudos trará recompensas
“A família que tem filho surdo não pode superprotegê-lo. É importante estimular a criança surda a ter uma vida normal. E a base é a educação para apresentar suas competências, mas cada um tem talento diferente; um perfil de profissional. Conheci muitos surdos que não fizeram uma graduação, mestrado e doutorado, e por isso trabalham na faxina, na produção e serviços gerais das empresas. As pessoas surdas e não surdas são iguais, somente a língua é diferente; no nosso caso, utilizando Libras na comunicação”, diz Keli.
A doutora acrescenta que muitos jovens não querem estudar em nível superior e desistem de buscar melhor qualidade de vida. “Tanto para surdos, quanto para não surdos, é difícil no início do estudo. É demorado, mas depois vem a recompensa com uma vida melhor e com um bom trabalho. As instituições federais de ensino superior oferecem vários cursos de graduação (gratuitos) em todo o Brasil. Isso oportuniza uma carreira profissional. Uma frase que gosto muito é: ‘Nenhum sonho é inalcançável e só a educação cria pontes indestrutíveis’”.
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