A poeira nas chuteiras de Nicolas Johann

Sair do interior para os campos de futebol do Brasileirão é um sonho distante, mas não impossível. Essa é a realidade vivida pelo alegriense Nicolas Johann, 33 anos, que joga pelo Goiás. Em 2022, disputou o Brasileirão da Série A, que conquistou a classificação para a Copa Sul Americana de 2023

A poeira nas chuteiras de Nicolas Johann
Atacante Nicolas Johann joga atualmente pelo Goiás. Na temporada passada, clube ficou em 13° lugar no Campeonato Brasileiro

Colaboração do texto: Clemar Zimmermann

Natural de Alegria, Nicolas Johann cresceu no seio de uma família com uma longa história de paixão pelos esportes. Seu pai, Danilo Johann, quando jovem, era muito ligado aos tios, conhecidos na região como “Os cinco irmãos Johann”, que ajudaram a fundar o “Clube 7 de Setembro” no município, local onde se desenvolviam jogos de bolão e futebol.

Algum tempo depois, este grupo se revoltou contra a diretoria do clube, que não queria que jovens participassem de atividades, pois os associados se envolviam em jogos tranquilos como cartas e bolão, e a juventude costumava ser mais expansiva, querendo jogos de mais atividade física, como o futebol.

Em 1965, este grupo e mais alguns amigos resolveram fundar a Associação Atlética Alegria. Danilo, que na época tinha 15 anos, conta que a ideia deu muito certo. “O time começou a ganhar muitos torneios na região, ficando sempre  em primeiro ou em segundo lugar”. 

Foi então que decidiram comprar uma área de terra de Salvador Siqueira para instalarem a sede do clube. “Foi fácil conseguir o terreno, pois a área em questão era, nada mais nada menos, que um tremendo de um banhadal, com olhos-de-boi e enormes capinzais. Mas alguém teve a visão que ali daria um bom campo de futebol e aí decidimos comprar”, explica Danilo, revelando que até  promoveram um baile para conseguir quitar a dívida.

Logo após, Danilo foi servir no Exército por cinco anos e acabou jogando no time dos ‘milicos’. Ele conta que o treinador do time havia trabalhado como treinador profissional no Rio de Janeiro e conseguiu polir bastante o futebol do soldado Johann e dos demais atletas, pois o time conseguiu ganhar diversos títulos.

 

Chegada de Danilo ao Botafogo

Em 1975, Danilo voltou do exército e arrumou emprego na filial da Cotrimaio em Alegria e lá conheceu o então capitão do Botafogo Esporte Clube de Três de Maio, Selito Bertoldo, que também acabou indo trabalhar lá. 

Em uma daquelas partidas entre funcionários, no final do expediente, percebendo que Danilo tinha algo de diferenciado dos demais, Selito o convidou para integrar o time do Botafogo de Três de Maio. 

Aquela era uma época que o Botafogo disputava com forte rivalidade o campeonato estadual de amadores, que teve a participação de 250 equipes do Estado e mesmo assim acabou alcançando o tricampeonato estadual amador em 1980, em final disputada no município de Marau.

Com experiência vitoriosa junto ao Botafogo de Três de Maio, Danilo teve ainda mais ânimo para continuar promovendo o esporte no município de Alegria. O futebol feminino, por exemplo, que na época ainda era visto com “reservas” por muitos, foi incentivado e acabou resultando no primeiro time só de mulheres da região. 

Na época, Danilo iniciou uma escolinha de futebol gratuita para as crianças do município de Alegria, e muitas delas acabaram finalistas da celebrada Taça RBS TV de Futsal, do ano de 1998, pelo município de Alegria, e televisionada para todo o Estado, entre elas os atletas Gainete, Dito, Nenê, Renato e Chiquinho.

 

A casa das vidraças quebradas

Logo começaram a nascer os filhos: Jonatan (1982), Bernardo (1984), Tuaní (1987) e Nicolas (1989) – que desde cedo estava sempre na sombra da mãe, Marlene, do pai e do irmão mais velho, quando estes iam para a praça jogar.

O irmão Bernardo não foi muito aguerrido ao futebol, mas a irmã Tuaní acabou aderindo fortemente ao futebol, e, como era a mais próxima em idade a ele, acabou incentivando bastante o irmão mais novo para brincarem com bola (brinquedo que absolutamente não faltava dentro de casa). 

O pai conta que era normal janelas serem estraçalhadas por uma bola jogada dentro de casa, para o desespero da mãe. Já Danilo não esquentava muito, pois sabia que aquilo era consequência do meio em que estava criando os filhos. “Quando uma vidraça quebra, é porque ela já deu o que tinha que dar”, brinca Danilo.

Certa vez, lembra o pai dos meninos, que teve que trocar cerca de 15 vidros de uma só vez, todos quebrados por boladas. 

Quando Alegria se emancipou, em 1987, Danilo foi convidado a comandar o CMD - Conselho Municipal de Desportes da prefeitura, sempre incentivando o esporte. No período que ficou à frente da pasta, promoveu grandes campeonatos de futsal na praça da cidade, atraindo todas as noites um enorme público que trazia cadeiras e chimarrão de casa para assistir a molecada arrebentar os kichutes na quadra.

 

Da Escolinha em Tuparendi para Brusque

Até que chegou o dia em que Nicolas, com dez anos de idade na época, pediu ao pai que o levasse fazer um teste na escolinha do Botafogo. Após isso ele acabou sendo convidado a participar de um campeonato em Rosário Central e Córdoba, na Argentina, e lá enfrentou equipes juvenis do Boca Junior, River Plate, entre outros. Ficaram em terceiro lugar.

Mas as coisas não começaram a acontecer. Algum tempo depois, Nicolas (então com 13 anos) e seu pai estavam em um restaurante em Santa Rosa, quando apareceu Carlos Farias, um grande incentivador da molecada futeboleira na região, que perguntou: “E aí, está jogando futebol ainda?”. Nicolas respondeu que não, mas mesmo assim Carlos o convidou para um novo projeto. Disse que estava começando com uma escolinha em Tuparendi e estava preparando uma equipe para jogar no estadual juvenil de futebol de campo”, conta o pai.

O convite foi aceito e Nicolas passou a ir todos os dias de ônibus de Alegria até Tuparendi, voltando com o ônibus dos estudantes universitários, que retornava para Alegria por volta da meia-noite.

Depois de um ano e meio jogando com o time de Tuparendi, Carlos Farias o convidou para jogar em um Centro de Treinamento de Italianos em Brusque, que tinha uma estrutura mais organizada.

O treinador do CT era italiano e, em 2006, levou as equipes que treinava para diversas excursões na Itália, jogando em regiões como Rieti, Florença, Roma e Milão, onde jogoram contra os times locais, inclusive participando do  “Torneio de Rieti”, onde jogaram contra times do Real Madrid e do Dynamo de Kiev.

 

Experiência na Áustria

Em 2008, Nicolas retornou para a Europa, para jogar nas bases do Áustria-Viena, time que começou a mostrar a ele o que era realmente o futebol, pois começou a ter contato com uma infraestrutura gigantesca, e a realidade de como funcionava o futebol começou a ser percebida de uma forma diferente. “Lá começou a me dar uma lucidez sobre o que era o futebol de verdade, a grandeza da coisa”, relembra Nicolas.

Em 2009, Nicolas retornou ao Brasil, mas completamente mudado com aquela experiência. “Mesmo assim, a montanha-russa da vida teve uma forte descida. Coisa absolutamente normal na vida de qualquer um que corre atrás de seus sonhos”, avalia o jovem jogador.

 

Começo como profissional

Em 2009, através do irmão Jô, Nicolas participou de um campeonato amador em Ijuí, onde acabou sendo campeão com o “Estrela” de Augusto Pestana. Nesse campeonato, um antigo treinador de seu irmão o viu jogar e o convidou para fazer um teste no São Luiz, de Ijuí.

Naquele momento, Nicolas recusou o teste, pois achava que os testes por aqui eram muito mal elaborados e mal avaliados. Mesmo assim, foi convidado para ficar por um mês e meio no clube e participar da pré-temporada. “Eu aceitei o convite e então começou um processo de condicionamento e treinos dia e noite com a equipe. Um certo dia fui convidado a integrar o time, e assim começou a minha carreira como jogador profissional”, revela.

Nicolas disputou o Gauchão naquele ano, fazendo cinco gols, marcando contra o Juventude, Ypiranga de Erechim e Inter de Santa Maria. Mas a carreira não se mostrava promissora, e aquilo não era o que ele queria. Seus sonhos iam mais alto, queria ter a chance de disputar uma Série A do Campeonato Brasileiro, algo com o que sonhava desde pequeno. “A disputa por um lugar ao sol é desleal; um jogador do interior precisa jogar 200 vezes mais para competir com um jogador em uma capital como São Paulo ou Rio de Janeiro”, avalia.

 

A família Johann: Nicolas, o pai Danilo, a irmã Tuaní, a mãe Marlene e os irmãos Bernardo e Jonatan

 

Persistir no sonho ou desistir de vez

Morando em Alegria, as dificuldades eram muitas. Para jogar, era necessário enfrentar vários quilômetros de estrada de chão e cascalho, além de mais sete horas de carro até Porto Alegre. Essa era a rotina de Nicolas, já que na região não existe nenhum campeonato que possibilite um jovem talento mostrar sua capacidade.

Tempos depois, Nicolas recebeu um convite para integrar o time de Frederico Westphalen. Porém, estava muito mais inclinado a desistir de tudo. Ao voltar para casa em Alegria, parou o carro em uma encruzilhada. Hesitou por alguns instantes em seguir adiante. À direita era a estrada para Frederico Westphalen; se seguisse reto, iria diretamente para casa dos pais. Sabia ele, se o fizesse, sua carreira certamente acabaria ali. Ligou para sua mãe e conversou por alguns minutos com ela. Após, resolveu seguir pelo caminho da direita.

Foi a Frederico Westphalen, entrou para o time e a partir daí não parou mais: foi jogar no Criciúma (Série B), jogou na Chapecoense (Série C), no Gama (Distrito Federal) e em vários outros clubes pequenos. Mais tarde foi para o Caxias, onde disputou o Gauchão, de 2016 a 2018, jogando como titular. 

 

No Paysandu, jogador ganha visibilidade nacional

Em 2019, foi para o Norte, jogar no Paysandu do Pará. Lá ganhou visibilidade nacional e outras propostas foram surgindo, como de Vasco da Gama e Fortaleza.

No clube, o jogador também passou por uma das experiências mais terríveis que um jogador pode passar na carreira. Em uma disputa pelo acesso a Série B do Campeonato Brasileiro contra o Náutico, o Paysandu ganhava o jogo por 2X0. Porém, o Náutico marcou o seu primeiro gol, e faltando dez segundos para acabar o jogo, o Paysandu sofreu um pênalti mal marcado pelo árbitro, o que acabou fazendo o Náutico empatar o jogo e levar a decisão para as penalidades. Nos pênaltis, acabaram perdendo o jogo. “Foi uma experiência traumática, que me acompanhou por muito tempo”, relembra.

Em meados de 2021 veio a proposta do Goiás, mas Nicolas estava muito tranquilo no Paysandu naquele momento, e conversando com um amigo, este lhe orientou: “Você precisa mostrar para os outros que você tem condições de jogar uma Série A do Campeonato Brasileiro, e, principalmente, mostrar para você mesmo, senão você vai ficar o resto da tua vida se martirizando por achar que podia e ter feito e não fez”.

 

Chegada ao Goiás e acesso à Série A

Naquela oportunidade, o Goiás disputava a segunda divisão do Campeonato Brasileiro, mas mesmo assim ainda era um dos maiores do país. Depois de muito refletir, Nicolas decidiu que já era hora de incrementar o currículo. Encarrou aquilo como a tentativa de realização de um sonho da jogar na Série A do Campeonato Brasileiro. “Saí por causa da razão, porque se fosse pelo coração, não tinha saído”, relata.

Nicolas conta que foi chamado de louco por muitos, mas a decisão viria a se mostrar mais uma vez acertada “Eu merecia jogar uma Série A do Campeonato Brasileiro, eu carregava isso comigo”, pontua.

Nicolas foi para time goiano e então tudo mudou. Diferentemente dos tempos em que jogava para públicos de cem pessoas em campos onde a grama às vezes quase batia nas canelas, passou a jogar somente contra atletas de alto nível, em estádios bons, para públicos de até 60 mil pessoas. “A tua adrenalina vai tão alto que se explodir uma bomba do teu lado, você não está nem aí”, revela. 

Jogou até no templo do futebol mundial, o Maracanã, e mesmo assim, a camisa e a pressão da responsabilidade não pesaram para Nicolas. “Eu estava extremamente preparado para aquilo, sabia que não havia caído ali de paraquedas. Foi o resultado do meu empenho e dedicação”, pontua.

 

Titular e artilheiro

Logo assumiu a titularidade e começou a fazer muitos gols, inclusive o gol do acesso do Goiás a tão sonhada Série A do Campeonato Brasileiro, em 2021, em jogo fora de casa, com cerca de 40 mil pessoas no estádio. O sonho de jogar a elite do Brasileirão acabou sendo conquistado pelo bico de sua própria chuteira.

No ano seguinte, se tornou artilheiro do Goiás pelo estadual e fez gols importantes pela Copa do Brasil, contra times de peso do cenário nacional, como Fluminense e Athletico Paranaense. 

Hoje, Nicolas está no auge de sua carreira e não pensa em parar. Está com 33 anos de idade e jogar futebol sempre foi o único sentido que encontrou para sua vida, não conseguindo imaginar como será o dia em que terá que “pendurar as chuteiras”. “Costumo dizer que um jogador de futebol morre duas vezes: uma quando para de jogar e outra quando chega a hora dele na terra”, cita.

Mas o que pretende fazer entre estas duas mortes ainda é uma incógnita. Apesar da responsabilidade o obrigar a pensar somente no agora, em todos os discursos que faz em cerimônias e entrevistas sempre fala nas crianças, talvez como uma pequena herança genética de memória, passada pelo pai, quando este começou a treinar a molecada de Alegria numa escolinha de futebol improvisada.

Será que essa história vai acabar se repetindo? Existem talentos perdidos em todos os lugares. Para uma criança, conhecer pessoalmente alguém que conseguiu chegar na elite do futebol brasileiro torna os sonhos mais palpáveis. E a lição que fica nisso tudo é que é possível, sim. Portanto, nunca subestime uma criança com uma bola, nem mesmo em Alegria, pois um belo dia ela pode resolver pegar o caminho da direita.